Em Tollygunge, distrito de Calcutá, dois lagos próximos um do outro se tornam um só na estação das chuvas. Todo ano, se separam e se juntam. É assim que Jhumpa Lahiri apresenta seu novo livro, Aguapés, para os leitores e é nesse cenário que moram os protagonistas da história: Subhash e Udayan.
O distrito é uma região pobre próxima a um grande clube de lazer inglês, com campos de golfe e corridas de cavalo. Do luxo dos gramados sempre verde para a lama e sujeira de um alagado são apenas algumas quadras e as primeiras páginas já mostram as contradições que permanecerão durante toda a narrativa.
Os personagens principais são Subhash e Udayan, irmãos com apenas 15 meses de diferença de idade. Tão próximos que a mãe sentia que tivera apenas uma, porém longa gestação. São inseparáveis enquanto crianças e a diferença entre as personalidades mais os completa do que separa. Subhash é mais caseiro e responsável, enquanto Udayan é mais ousado e desafiador.
Os dois são muito inteligentes e conseguem ir para boas universidades apesar da origem humilde e é a partir desse momento que a vida dos dois começa a se separar. Por influência de colegas, Udayan se junta ao movimento naxalista, que aconteceu na Índia durante a década de 60 em busca de melhores condições de vida. Simpático aos ideais de Che Guevara e ao governo de Mao-Tsé Tung, as ações foram duramente reprimidas pelo governo indiano e o grupo começa a adotar técnicas de guerrilha para alcançar seus objetivos. Cada vez mais próximo da luta e da causa, Udayan sofre uma mudança ainda maior quando viaja e passa algum tempo no interior, vivendo com e como os camponeses, voltando para casa magro e doente. As péssimas condições de vida o surpreendem e deixam nele uma marca para o resto da vida.
Até certo momento, Subhash acompanha o irmão. Preocupa-se com ele quando notícias sobre revoltas e mortes de camponeses são dadas no rádio (que construíram junto), chega a ir a reuniões e ler materiais sobre a revolução. Mas seu senso de responsabilidade parece ser maior e ele nunca se envolve de fato. Continua seus estudos e recebe uma bolsa de estudos para fazer seu doutorado nos EUA. Muda-se e deixa parte da sua vida para trás.
A separação que começou na época da faculdade agora fica muito mais intensa. Udayan escreve cartas com alguma frequência para o irmão, mas parece não contar tudo que de fato acontece em casa. Subhash tem medo de ler o que recebe e não se importa em responder sempre. Ainda assim, mesmo sem saber, existem similaridades entre eles. Ambos quebram costumes da sociedade indiana, Udayan se casando sem consentimento ou escolha dos pais com uma estudante de filosofia chamada Gauri e Subhash tendo um caso com uma mulher mais velha nos EUA.
Nessa primeira parte do livro, Jhumpa Lahiri constrói a base de seus personagens, suas relações e suas personalidades. E é a partir desse momento que ela os confronta: Udayan morre e Subhash viaja para casa apenas para encontrar sua família completamente destruída. Os pais estão em um completo estado de negação, ainda sem saber como continuarão a viver depois da perda do filho. A cunhada, viúva com 23 anos em uma casa que não sabe a acolher como parte da família, acaba de descobrir que está grávida. A presença de Subhash parece mal ser notada e a morte do irmão ainda não foi explicada.
Subhash toma uma decisão racional: para proteger o filho de seu irmão, casa com a cunhada e a leva para os EUA, onde se tornam uma família que nasceu da dor.
A obra acompanha esses personagens até a senilidade. Durante esse longo período de tempo, eles ficam cada vez mais complexos e os reveses da vida parecem acrescentar mais e mais camadas. Jhumpa Lahiri desenvolve personagens profundos e completos, com vários sentimentos, desejos e medos. A diferença entre sentimento e racionalidade está presente em todos eles e permeiam as escolhas tomadas ao longo de suas vidas.
Narrativa
Algo chama atenção na maneira com que a autora desenvolve o enredo. Apesar de acompanhar os personagens durante um longo período de tempo e em mais de uma geração, o livro não é exaustivo. De certa forma, é como se ela conseguisse ver a vida dos personagens em uma linha do tempo e identificasse os momentos mais importantes, que foram chave na transformação e formação dessa pessoa. E são esses os momentos apresentados para o leitor. Assim, um mesmo acontecimento pode ser exposto do ponto de vista de diferentes personagens e a história fica mais complexa.
Essa construção permite também um amadurecimento dos personagens. Bela, filha de Gauri com Udayan, é apenas uma criança no início do livro, fator que influencia a comportamento dos pais, mas adquire ela mesma mais profundidade ao longo da obra. Ela se depara com um conflito, tem seu momento de fuga e eventualmente precisa lidar com uma nova realidade, algo que finalmente a ajuda a se libertar e prosseguir a vida. O próprio Subhash consegue perceber o resultado de suas escolhas e passa a viver sua vida sem medo.
Usando a história da família como pano de fundo, a autora consegue abordar muitos temas em sua obra. A história mostra como a política e a maneira com que a sociedade funciona afetam diretamente as vidas individuais.
Ao mesmo tempo, o livro mostra quanto de fato custa uma mudança em um país, cuja população vê seus filhos morrerem enquanto lutam por melhores condições. São marcas de uma repressão que afeta indivíduos dos dois lados da revolução.
Além disso, ela aborda o abismo criado depois de um processo de emigração. A transformação que ocorre nas pessoas que saem de seu país e nas gerações que nascem nesse novo lugar parece tornar quase impossível um retorno ao lar, que, de repente, parece pouco familiar.
A imagem inicial do lago permanece: os irmãos são dois, mas muitas vezes se tornam um. É um que concebe a filha, mas o outro que a cria e se torna o pai. A sua metáfora é apenas o ponto de partida de uma obra com muitas dimensões, desde o que acontece com seus personagens até tudo que se aborda com eles. É uma obra sobre a sociedade da Índia, mas também sobre pessoas, amores e escolhas.