Do lado de lá de cá

Este texto será lido no dia 9 de setembro, no Centro Cultural de São Paulo, durante o debate que discutirá a relação entre os novos escritores e a crítica.
01/09/2002

O gravador é o maior instrumento de canonização que eu conheço. Diante dele, todos os escritores viram santos. Explico: apesar de parecer o contrário, entre os novos escritores não há verdadeiros beatos, verdadeiros monges. A maioria de nós gosta é de fazer pose, de vestir os trajes do grande intelectual, do sujeito apartado das questões mundanas. Adotamos essa postura — quando a adotamos — por vaidade, porque ela ainda rende muitos votos. É claro que não fazemos pose de santo vinte e quatro hora por dia. No bar da esquina, durante a rodada de chope, deixamos a compostura de lado e falamos o diabo de Deus e o mundo. Só vestimos o terno do intelectual responsável em situações como esta, que nos põem cara a cara com o público, ou diante das câmeras de tevê. Se puserem um gravador em cima da mesa e nos perguntarem sobre a crítica, a resposta será: “A crítica não nos interessa. Somos imunes a seus vereditos. Nossa arte está muito acima da lengalenga dos críticos. O escritor não tem que se preocupar com o que vão dizer da sua obra, o escritor tem que escrever, e ponto”. Essa nobreza e esse desapego são pura encenação. Não digo que essa encenação seja algo premeditado, típico dos canalhas. Essa troca de roupa é instintiva, a maioria dos escritores nem se dá conta do que acaba de fazer. Nem mesmo o público se dá conta do que ele acaba de fazer. O acordo é tácito entre as duas partes: escritor e público. A crítica interessa, sim, a todos os escritores. A nós não bastam apenas escrever e publicar, queremos que nosso talento seja reconhecido, enaltecido, incensado. E o fundamental: que isso aconteça em vida, cacete! Porque daqui a cem anos não servirá para quase nada.

É claro que a obsessão do escritor pela crítica tem diferentes graus. Normalmente os mais jovens e os estreantes de todas as idades são mais carentes de afeto crítico do que os escritores mais experientes. Estes, macacos velhos, aprenderam a duras penas que hoje a moeda da crítica vale menos, bem menos, do que a da propaganda e do marketing, por exemplo. O escritor experiente sabe que as resenhas negativas de um livro que está vendendo bem jamais afetarão seu editor. Tampouco as resenhas positivas de um livro que está vendendo mal. Se não for possível obter o sucesso de crítica e de público, às favas a crítica! O escritor experiente e seu editor farão de tudo para obter ao menos o sucesso de público.

Apesar de já ter tomado boas bordoadas e de ter perdido quase todas as ilusões relacionadas com a literatura, ainda não faço parte do seleto grupo dos autores experientes. Mas felizmente também não pertenço mais ao grupo dos iniciantes. Estou no meio do caminho, pedregoso e selvagem como o de Drummond e Dante, por isso minha relação com a crítica literária é tão dúbia.

A crítica literária não tem, para mim, que escrevo e publico ficção, a mesma importância que meus livros têm para a crítica. É sempre bom lembrar que a crítica literária encontra-se dividida, hoje, em dois ramos: o universitário e o jornalístico. O ramo universitário, salvo raras exceções, interessa-se apenas pelas obras e pelos autores canonizados. O ramo jornalístico interessa-se pelos lançamentos do mercado editorial, pelos livros que estão chegando às livrarias neste exato momento. O cronômetro do pesquisador acadêmico marca os meses e os anos, o do jornalista marca as horas e os dias. Enquanto os pesquisadores das universidades mergulham fundo nas obras e nos autores canonizados, os resenhistas da grande imprensa, por falta de tempo e espaço, fazem vôos rasantes nos livros recém-lançados. O cruzamento desses dois ramos acontece quando o livro recém-lançado também é a nova edição de um clássico da literatura, ou quando, além disso, o resenhista convidado pelo caderno literário é também um pesquisador universitário. Mas por diversas razões esse cruzamento raramente acontece. Pensando bem, os próprios escritores, muitos dos quais não pertencem nem à universidade nem à grande imprensa, se encarregam de formar outro ramo de crítica. Mas esse novo ramo na verdade não passa de apêndice do segundo. Afinal, a produção desses escritores-críticos se restringe a colaborações esporádicas nos jornais, sempre de curto fôlego, quase nunca avançando para as longas dissertações e teses. É dessa maneira até certo ponto mecânica, sem meios tons e de margens muito bem definidas, que, como ficcionista, vejo a crítica literária brasileira contemporânea.

Quando digo que a crítica literária não tem, para mim, a mesma importância que meus livros têm para a crítica, não quero dizer que eu dê de ombros para a crítica, enquanto, em contrapartida, ela se mantém prostrada aos meus pés. Muito menos o contrário: que eu esteja sempre em busca da bênção da crítica enquanto esta insiste em me ignorar completamente. O que acontece, ao menos no meu caso, é que o ramo da crítica que me interessa é o da crítica universitária, que por sua vez está se lixando para os meus livros. Já a crítica jornalística sempre esteve interessada na minha literatura e nunca deixou de registrar cada um dos livros que publiquei. Mas a crítica jornalística, por não se aprofundar muito nas questões que toda obra oferece, seja ela boa ou ruim, me interessa pouco. As resenhas nos cadernos literários têm me interessado apenas na medida em que põem em evidência, para o freqüentador de livrarias, meu último trabalho. Ou seja, na medida em que divulgam uma obra recém-lançada, funcionando como ferramenta de propaganda e ajudando nas vendas. Só depois disso é que o parecer do jornalista, se não calhar de ser algo apressado e mal escrito, acaba cativando minha atenção. E também minha reflexão, caso apresente dois ou três palpites acertados sobre o que escrevi — mas isso, nos dias que correm, já é pedir demais.

É óbvio que a fronteira entre o que chamo de crítica universitária e crítica jornalística só é clara aqui, no meu comentário. No dia-a-dia, essa fronteira é mais movediça, nunca permanece no mesmo ponto, ora avança ora recua para fora do campo de visão. Mas, apesar desse movimento, essa fronteira é real, existe de fato. Ela divide dois campos que mantêm entre si o tipo de interação que há normalmente entre tudo o que é popular e tudo o que é erudito: a crítica jornalística, popular, alimenta-se da crítica universitária, erudita, quase sempre com vários anos, ou até décadas, de atraso. É a defasagem nesse processo simbiótico que cria a impressão, em nós, mortais, de que os dois grupos não falam a mesma língua, não vivem no mesmo planeta. No bojo dessa defasagem metodológica, é bom não esquecer, estão as obras e os autores da predileção de cada atividade crítica. Por que a crítica jornalística é obrigada a se alimentar da crítica universitária, e não o contrário? A resposta é simples. A crítica literária erudita, levada a cabo nas universidades, é vista pelos jornalistas e pelos leitores como a Crítica Literária, com iniciais maiúsculas, entidade monstruosa, absoluta, perene, transcendente. Apesar de essa entidade ser constituída de dezenas de tendências diferentes, que vão se sucedendo ao longo dos séculos, o aspecto monolítico de sua silhueta não muda, ao menos não para o leitor de resenhas. Essa Crítica, sempre com inicial maiúscula, rica em sutilezas de pensamento, é algo que está muito distante do cotidiano, do leitor comum. É algo que, com freqüência, não chega a interessar nem mesmo aos escritores. É a crítica dos críticos, produzida e consumida apenas por eles. É claro que vez ou outra ela espertamente assimila elementos de sua prima pobre, impressa em papel jornal. Mas o faz da mesma maneira que a arte erudita costuma absorver elementos da cultura popular: descaracterizando-os, recobrindo-os de aura.

Até aqui minhas observações sobre a crítica — ou melhor, sobre as críticas, porque são duas —, deixaram transparecer a dor-de-cotovelo que sinto pelos meus livros não interessarem à crítica universitária. E, como se esse rompante de vaidade não fosse o suficiente para me deixar em apuros, também revelam meu lado esnobe, o desinteresse que costumo votar às resenhas jornalísticas. Para tentar salvar um pouco as aparências, vou calar a boca do escritor e deixar falar a do estudante de pós-graduação.

Posicionado do lado de cá da cerca, observo demoradamente os escritores reunidos no lado de lá. São figuras bizarras, podem apostar nisso. Relacionam-se mal com a vida prática, com o terreno minado do sistema capitalista. Sua sanidade mental e emocional depende totalmente dos livros e dos projetos de novos livros, sem os quais enlouquecem. Escrevem porque gostam de ler, lêem porque essa é das poucas atividades que os mantêm conectados à realidade. Lendo e escrevendo, sentem-se vivos, por isso a literatura não é para eles mero artesanato — ela é a ferramenta mais adequada contra a degradação da morte. Meio século atrás, a maior parte dos escritores era constituída de seres excêntricos, tímidos, que detestavam os oba-obas do convívio social. Esses tipos reservados costumavam dizer para si e para os poucos amigos que “literatura é trabalho solitário”. Hoje os escritores são antes de tudo seres gregários, afeitos a festas e badalações. Vivemos a era da alta exposição, quem não mostra a cara nos jornais, nas revistas e na tevê quase não existe. Por isso o crítico literário — tanto o da imprensa quanto o das universidades — é, para os escritores de hoje, uma nova espécie de colunista social. A determinação com que assediam a Crítica Literária (sempre com iniciais maiúsculas) muito me espanta, agora que estou do lado de cá da cerca. O que os escritores querem é ser canonizados em vida, essa é a razão porque batem tanto na porta do reconhecimento público. O absurdo é que a canonização prematura — ritual impossível de ser realizado, pois toda canonização pressupõe a ação de várias gerações de leitores e críticos —, se fosse conduzida a bom termo comprometeria a dignidade do escritor e de sua arte. Se o que leva as pessoas a escrever é a necessidade de se destacar da banalidade cotidiana, batalhar para que sua obra recém-lançada seja rapidamente assimilada pela sociedade é o mesmo que entregar a si, em cerimônia solene, o atestado de óbito.

Do lado de cá do muro, paciência é tudo o que eu peço ao Nelson de Oliveira posicionado no lado de lá, entre os escritores. Mas é claro que esse pedido se perde no ar, ninguém lhe dá ouvidos. Se o Nelson do lado de lá fosse alguém cheio de paciência e bom senso, certamente não seria escritor. Seria somente crítico, e olhe lá, hein?!

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho