Do azul incandescente com que se tece o absoluto

A portuguesa Cristina Victória transita entre a prosa e a poesia, numa experiência de recriação da linguagem
01/11/2002

“há um andorinhão a gemer de encontro ao Sonho(…)”
Cristina Victória, Absoluto e discrição, p.13.

É à luz desta poderosíssima imagem que ouso abordar a escrita desta jovem escritora portuguesa, Cristina Freixo, nascida em 1967 e autora de um dos mais belos e fascinantes livros publicados em Portugal nos últimos anos, revelando-a como uma voz intensa e original, no atual panorama literário português. Embora discretamente acolhido, a sua obra de estréia não passou despercebida aos olhos da crítica.

A provar que a literatura como utopia subsiste, resistindo aos facilitarismos e modismos literários, Cristina Victória convida-nos ao mergulho no seu texto-em-poesia:

tomai e provai

este é o meu livro entregue por mim a quem o quiser provar. quem teve a Amabilidade de o saborear terá ouvido, desde a primeira à última página, um Som, um Apelo, um Desejo repetitivo em crescendo de encontro com o alguém que amo desde as Origens, o alguém que foi criado ao mesmo tempo que eu por Heus, e de quem, por uma razão que desconheço, fiquei separada desde que caí no Tempo. sem esse — o meu irmão, serei sempre incompleta, até que ele se volte a unir a mim com um corpo humano.” (p.134)

O corpo do texto que aqui se oferece, tal como o corpo de Cristo se oferece em comunhão, é, sem dúvida, um “corpo de amor”, que se afasta do aspecto sacrificial habitual e, igualmente, do corpo da última ceia. Trata-se, antes, de um corpo que cresce (no texto) e se expande, reconhecendo-se nessa partilha, simultaneamente como celebração — do amor — e convocação de (H)eus.

Escute-se o som polifônico do cântico — “um cântico dos cânticos moderno” — da paixão que atravessa todo o livro, num percurso traçado pelo incessante questionamento do mundo e do Ser. Num mundo em que tudo existe pela perda, fragmentário, onde as cores dos acontecimentos são o verde, o amarelo, permanece a busca do “azul possível” (p.65), imagem que concentra em si a androginia e a unidade do ser primordial. Absoluto e discrição desdobra-se como um apelo à escuta da música e também da dança, que encontra no Zaratustra de Nietzsche a matriz geradora dessa incessante busca do absoluto. A questão com que abre o livro: “queres dançar, Cristina?” (p. 5) supõe um sutil diálogo entre a escrita e a dança, sendo que esta se desenvolve na própria escrita: “escrevo a verdade/ sobre a eternidade” (p. 5).

Mais que a evocação do absoluto e da longínqua aura em que todos os acontecimentos se inscrevem, é de uma convocação, de um reencontro com a singularidade, que se trata: “o que é um absoluto?”. Nesta justaposição/tensão se situa toda a obra, incrustando-se imediatamente o questionamento numa procura ontológica: a escrita visível é uma repetição da escrita cosmogônica e originária, que nela palpita, secreta, e faz convergir a história pessoal de Cristina Victória numa cosmogonia.

De onde nasce tudo, o que hoje nos aparece na multiplicidade dispersa das cores? As coisas aparecem cobertas pelo pó que tudo obscurece, esse “pó negro era sempre mais gigante do que ela, maior que a humanidade inteira” (p. 24), destruindo convicções, prendendo-se “aos dedos dos poetas e dos lavradores”, o mesmo pó que Cebastiana daria tudo, “o verbo e a vontade” para fazer desaparecer, elevando a imagem ao seu fulgor primordial. Vislumbrar a escrita visível como o (único) modo possível de chegar ao azul, ao plano genesíaco em que deus escreveu o mundo converte-se num propósito claro, em Absoluto e discrição. Cristina Victória (re)inventa uma cosmogonia que encontra em (H)eus a origem do Verbo, o deus mudo da escrita, o Desenho e Poesia em simultâneo, numa escrita imagética.

Filha de (H)eus e de Ana, nasce Cebastiana Poema, filha do Verbo, mas em busca incessante desse irmão de espírito que é Miguel Desenho, que lhe trará a outra parte de si, capaz de fazer retornar o absoluto ao seu resplendor. O C, letra com que se inicia o nome de Cebastina, sintetiza o “C de Coração. C de Cristo” (p. 12), rompendo o círculo fechado de O: “O com uma abertura. é um absoluto aberto”.

Nessa dupla condição que o paradoxo comporta em si, um “absoluto aberto” e que recusa o fechamento, mas que se converte, pela lei da metamorfose, em constante apelo da pureza do verbo, inicia Cebastiana, “coração infantil”, a sua caminhada: “sou filha do Verbo e ao Verbo hei-de voltar, mas não sem ti, irmão” (p.13). Todo o percurso, sentimos, se inicia nesse encontro fulminante do “andorinhão a gemer de encontro ao Sonho”, a ave que se submeteu à “ferida da terra”, enegrecendo na tristeza de estar parada. Bem cedo, coração infantil compreende que o peso da terra faz perder amplitude e horizonte e que só essa dança com a eternidade permite o vôo. A Alegria zaratustriana faz a sua aparição — nas suas três metamorfoses —, transfigurando o medo em delicadeza musical, em coração infantil, pois só nele (re)encontra a admirável inocência que permite a leveza da dança: “coração infantil ajudará a águia a transformar Paisagens aterrorizadas em Música de extrema delicadeza” (p. 16), nesse território em que “a águia unir-se-á ao cisne”.

Cristina celebra, assim, a “festa da[s] letra[s]” (p. 94), que supõe, também, a dança que existe entre o pensamento e a linguagem, entre o segredo (do indizível) e o sagrado, entre a filosofia, a poesia e a infância, procurando unir/ cerzir “uma costura sublime”, a unidade entre os Eus, isto é, entre os homônimos e heterônimos discordantes. O que permite essa unidade é, sem dúvida, a lei da metamorfose, que permite o trajeto que vai do “pó negro” ao “azul possível”.

A exigência da libertação criadora — e do retorno à unidade primordial — faz-se omnipresente, explícita quando Cristina Victória diz: “Eu quero o sonho que me é próprio, a minha história irrepetível”. (p. 121). A história que se deseja irrepetível, precisamente por se inscrever num plano cosmogônico, é também a história da vida, tentando evitar a morte e o apagamento do Verbo. A escrita da criança no ventre, trazendo a memória do Verbo, esse ventre cuja existência se ilumina e abre para “dar à luz muitos verbos do Verbo” (p. 9), recusando (e paradoxalmente vivendo desse modo, como sujeito singular) a vida como distância dolorosa de todas as coisas em relação a tudo, da existência e do dizer, em relação ao Ser-memória-sem-tempo.

Na sua travessia quase — e neste “quase” se circunscreve tanto o mérito, tanto quanto a dificuldade da leitura — inóspita, a obra de Cristina Victória insere-se no “domínio puro da textualidade” (p. 141), no limite da negação da própria escrita, tomada enquanto ficção. Na sua natureza poemática, onde nos situamos entre a “poesia filosofante” e a “bioesia (poesia biográfica)” (p. 141), é no escrito que se funda o real, essa admirável litania ou convocação que abre uma fratura no tempo e se enraíza ontologicamente no cântico. Aqui, “o poeta de que se fala situa-se no ser-em-si-da-poesia, não escreve poesia, mas Vive nela.” (p.141).

Dessa indiscernibilidade entre vida/escrita, imagem/poema, recorrendo estilisticamente a imagens poéticas cuja vitalidade orgânica é irrecusável, aproxima-se Cristina Victória de Daniel Faria, poeta da transcendência. Numa conversão mútua e permanente, escrita e vida entrelaçam-se, metamorfoseando-se, sendo que esse espaço litúrgico — o do canto e da dança, da inocência infantil capaz de gerar — é o espaço onírico, da abertura para o sonho. A única lei que percorre as suas fendas é a lei do sonho, o da convocação e da sustentação do irrepresentável, emergindo e convulsionando o poema, a cada momento.

Através de um trabalho intenso e subtil com a linguagem, Cristina Victória joga “às Interrogações Impossíveis” (p. 61), combinando elementos primordiais enquanto possibilidades de (re)construção do (seu) corpo, com vista a alcançar o corpo de “amor sem elementos”, absoluto, “que é muito maior do que o corpo platônico”, gerado pelo encontro entre eros e ágape: “eros e ágape cozidos com linha azul”. (p.83).

O “texto-em-poesia” de Cristina Victória, tal como ela própria o apresenta, tenta levar ao máximo a anulação e a diluição entre os gêneros da prosa e da poesia, numa experiência de recriação da linguagem, empurrando-a para além das barreiras que lhe são impostas pelos cânones literários, tanto na categorialização dos gêneros, como na fusão entre imagem/poema, recorrendo a uma expressividade intensa que lhe advém das sutilezas semânticas criadas ao longo do texto, formando nomes compostos por meio de hífen, justapondo elementos que são, habitualmente, usados separadamente e separando prefixos. Também lança mão de recursos gráficos, como a utilização freqüente do itálico e do negrito e utilizando de modo diferente as múltiplas possibilidades de alinhamento dos poemas na página. Nesta obra, tudo se (re)combina, suscitando a surpresa, efetuando a suspensão.

Talvez aí, pelo poema-imagem que se escreve em si e caminha no rastro do absoluto, no intenso fulgor do cântico dos amantes, seja possível, ainda acreditar ser possível redimir o negro andorinhão que, assim, resvala para a melancolia.

Maria João Cantinho

Nasceu em abril de 1940, em Alter do Chão. Estudos de Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa (1958-64). Dissertação sobre a obra do dramaturgo inglês Harold Pinter: Entre a Palavra e o Gesto. Interpretação do Teatro de Harold Pinter. Lisboa, 1964. Foi leitor de Português na Universidade de Hamburgo (1965-68) e leitor de Língua Alemã e Docente de Literatura Alemã e Comparada na Faculdade de Letras de Lisboa (1969-86). Desde 1986 é Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com regência de Cursos de Mestrado e Licenciatura em Estudos Alemães e Literários Comparados, e Pós-Graduação em Tradução.

Rascunho