Alan Pauls (1959) vem se afirmando como um dos nomes mais importantes da literatura argentina atual. Dentre seus leitores mais entusiastas, estão nomes como o espanhol Enrique Vila-Matas e o chileno Roberto Bolaño, falecido em 2003. Com o último, que não conheceu pessoalmente, Alan Pauls manteve uma intensa correspondência eletrônica. Em um pequeno texto chamado Ese extraño señor Alan Pauls, Bolaño afirma, sem meias palavras, que Pauls é “um dos melhores escritores latino-americanos vivos”.
O passado, romance vencedor do prêmio Herralde em 2003, vem confirmar as melhores expectativas. O enredo é aparentemente banal: Rímini e Sofía, juntos desde a adolescência, compõem aquele tipo de casal que as pessoas jamais esperam ver separado. E quando isso ocorre, toda uma vida em comum precisa ser dividida, reajustada: amigos, familiares, bens materiais, e um sem número de lembranças cotidianas.
Rímini e Sofía desenvolvem, então, comportamentos opostos. Ele pretende abandonar completamente o passado. Passa a evitar a ex-mulher, bem como todos os restos do casamento. E a escolha de uma namorada mais jovem, Vera, é sintomática: sem passado amoroso, ela é como uma página em branco, uma porta aberta para o futuro. Talvez por isso, Vera é obsessivamente ciumenta: não pode competir com o que não entende, com uma experiência pessoal que, no limite, não é compartilhável.
Sofía, por sua vez, não apenas insiste em preservar o passado, como também reaparece periodicamente na vida de Rímini, como que saída das sombras, para lembrá-lo de que sua vontade é impossível. “Ninguém (…) pode esquecer doze anos assim, de um dia para o outro. Você pode tentar, se quiser (…), você pode fazer todo o esforço do mundo, mas não tem sentido. Não vai conseguir”, escreve ela, em uma carta que, aliás, ele não lê. Aliás, em entrevistas concedidas em sua recente passagem pelo Brasil, Alan Pauls confessou que o título provisório do romance era A mulher zumbi. Estranho, mas em certo sentido bastante adequado.
E Sofía não está só: ela funda uma sociedade chamada Adèle H. — em referência ao filme de François Truffaut — composta por mulheres que dizem “amar demais”. Um pouco como num grupo de auto-ajuda, essas fanáticas discutem suas histórias, trocam experiências e conselhos. Mas ao contrário do que se espera de um grupo de tal natureza, elas não combatem sua enfermidade (no caso, o amor). Não há arrependimento por se amar em demasia; antes, o que “As Mulheres que Amam Demais” procuram é o exercício indiscriminado desse amor, em nome do qual se tornam quase terroristas sentimentais.
A relevância do filme de Truffaut para o romance é apenas um exemplo de como as referências extratextuais, em O passado, não são gratuitas, e estão bem integradas aos conflitos e principais cenas do enredo (diga-se de passagem, coisa rara em certa literatura contemporânea que adota as referências intertextuais de maneira indiscriminada, como um valor em si). Deste modo, o livro se compõe, aos pedaços, de referências mais ou menos discretas a uma música, a uma obra de arte, a um filme: pode ser a evocação de uma cena roubada de Fellini “ou, para ser mais exato, de Giulietta Masina”, ou a simples lembrança de “um personagem perverso de filme dos anos 70.” Sem nos esquecermos que Rímini, na Itália, é precisamente a cidade de Federico Fellini. Estes elementos são, enfim, fundamentais na composição dos personagens. E de seu passado em comum.
O que, aliás, a bela edição da CosacNaify soube muito bem valorizar. A capa nos lembra, visualmente, um envelope. O que é bastante adequado, já que a correspondência é uma das formas de comunicação mais recorrentes no livro. Além disso, os envelopes são importantes porque carregam objetos do passado: guardam lembranças, postais, fotos, recortes. Algumas dessas imagens são reproduzidas no interior da capa, enquanto o texto é entremeado por cenas de filmes relevantes à trama: Rocco e seus irmãos, Nasce uma estrela, Amor, sublime amor e, é claro, A história de Adèle H.
Não à toa, Sofía, precisamente por estar “condenada” a não esquecer o passado, é muito ligada à escrita (com um curioso gosto pelos parênteses), às cartas e às fotos antigas. Mas não só isso. O passado se materializa também em outros objetos acumulados na vida do casal — uma caneta, um enfeite de sala, um móvel — nos quais o passado se incrusta, em manchas, riscos e marcas mais ou menos profundas. Tais objetos, onipresentes, são pequenos “blocos de experiência, miniaturas de amor” que tornam o passado dolorosamente material, e promovem uma contínua reflexão sobre a memória e a natureza das relações amorosas. O romance está permeado de insuspeitas metáforas para o amor:
Pois para eles o amor era de ordem superior. Rímini o imaginava como um lugar pequeno e bem aquecido, forrado de tapetes, com as paredes recobertas de livros, onde os estremecimentos do mundo só entravam traduzidos para o dialeto poroso que era a língua local.
Ou ainda:
Era como se o tecido esgarçado do amor se reconstruísse numa velocidade inconcebível, sozinho, e suas fibras, seguindo de cor o desenho original, de novo se trançassem até apagar todo traço de ruptura.
Tais metáforas se sucedem, mas não se esgotam. Talvez porque não se esgote o tema, e elas não passem de tentativas falhas de defini-lo:
Descobria a que ponto momentos como esse, esvaziados da seiva amorosa que deveria tê-los animado, evidenciavam algo que para ele só devia existir em alguma vaga dimensão metafórica: a idéia de que o amor, o amor verdadeiro, esse amor que estava além de qualquer estilo, não tinha nada a ver com a efusão, nem com a sensibilidade ou o caráter envolvente dos sentimentos, e tudo, ao contrário, com a precisão, a economia e uma faculdade antiga, injustamente desprestigiada, chamada pontaria. O amor não abraça, pensava Rímini: fere. Não inunda, crava-se. Como era possível que Sofía continuasse acertando?
A idéia que prevalece, afinal, é a do amor como enfermidade. Um personagem coadjuvante, em particular, representa bem o saldo desse mal: um velho, em seu leito de morte, não sente vergonha pelos anos em que traiu a esposa. Antes, aspira avidamente a um último momento com a amante, mesmo em pensamento, e suplica para que alguém o masturbe. É um final patético, sem qualquer redenção. Se o amor é um mal físico, é também um vício pelo qual parece valer a pena se sacrificar.
Momentos de compulsão e desvario se sucedem, seja na própria história de Rímini, seja em algumas das histórias paralelas ao enredo principal. Como a de uma antiga professora de Rímini, protagonista de uma tragédia amorosa. Ou a vida turbulenta de Jeremy Riltse, o artista plástico mais admirado por Rímini e Sofía, autor de uma série sugestivamente intitulada “História clínica”. São todos, em maior ou menor grau, doentes incuráveis. Neste aspecto, o romance não faz concessões ao amor idílico ou idealizado. Não há esperanças fora da compulsão amorosa. O amador não ascende a um Ideal, mas se degrada.
A crescente estranheza dos eventos narrados, algumas vezes à revelia de uma lógica aparente, provocam um efeito alucinatório. O que se reflete no ritmo bastante particular da prosa de Alan Pauls, em suas longas frases, e em seus zooms quase cinematográficos. Pauls escreve muito bem, e seu gosto por períodos longos revela mais do que uma tentativa de virtuosismo exibicionista: seu texto é elegante, sem ser prolixo, e o ritmo das frases e parágrafos é bastante adequado aos eventos que descreve. É um autor sem medo de soar “literário”.
E por vezes, a atenção ao detalhe — a meticulosa descrição de um gesto, de um objeto — se sucede a uma longa lacuna de tempo: “a lógica das coisas era a descontinuidade, o vaivém, a alternância ritmada de momentos acidentais mais ou menos arbitrários e momentos de estabilidade mais ou menos previsíveis”. Atos importantes para o enredo não são narrados, e são apenas sugeridos em cenas subseqüentes, enquanto que uma digressão ou um evento aparentemente banal tomam muito de nossa atenção e da atenção dos personagens. Talvez seja uma influência da linguagem cinematográfica, à qual o autor se diz devedor. E talvez seja assim mesmo, com a memória: o apagamento (in)voluntário de longos blocos do passado, e a incontornável recorrência de pequenos detalhes, reinventados a cada nova lembrança.