O escritor e jornalista Carlos Herculano Lopes acaba de presentear o leitor com duas novas obras: Entre BH e Texas (crônicas) e O vestido (romance), que representam incursões em universos distintos, mas com a mesma poesia e desvelo com que o autor, costumeiramente, vem tratando de temas ligados à alma humana em sua premiada bibliografia.
Entre BH e Texas empreende uma deliciosa viagem pelo multifário universo dos acontecimentos urbanos e humanos, com a permeabilidade e a leveza que só a crônica permite. Nessa coletânea estão reunidos os melhores trabalhos dentre os produzidos nos últimos anos e publicados semanalmente no jornal Estado de Minas.
Um pouco daquela humanidade perdida ou esquecida em razão da velocidade e utilitarismo da vida moderna vamos encontrar nos diáfanos textos desse livro. O que há de lírico e belo nas histórias comuns e também de interessante nas situações bizarras, nas ocorrências inusitadas ou nos momentos patéticos ou aparentemente sem importância é foco para seu olhar literário, muitas vezes recheado de humor e ironia. Nesse mapeamento da vida — a que se vive e a que se colhe no dia-a-dia, na burocracia das cidades ou na placidez dos pequenos burgos interioranos — nada escapa ao meticuloso observatório do autor. Fotografando com fidelidade o cotidiano, retrata cada cena, sejam os dramas ou as alegrias, o perfunctório ou o profundo, com a leveza e a elegância dos grandes mestres do gênero, aproveitando essas fontes para uma cuidadosa e sutil reflexão sobre a própria existência a partir dos acontecimentos quotidianos.
Já em O vestido, Herculano inspirou-se no poema O caso do vestido, uma das mais belas e candentes construções de Carlos Drummond de Andrade, para elaborar uma obra distinta, dando ao texto do itabirano maior espaço para trabalhar o lirismo e a dramaticidade, numa história de amor extremado, em que paixão, traição e perdão são os temas centrais. O livro nasceu de um roteiro feito por Herculano para o cineasta Paulo Thiago com base na adaptação do poema para o cinema e o projeto o entusiasmou tanto que a obra transformou-se num romance autônomo, com a mesma qualidade de seus livros anteriores, como A dança dos cabelos, Sombras de julho e Coração aos pulos.
Na história delineada por Drummond nas 75 estrofes ou 150 versos (publicada em 1945 em A rosa do povo), há uma dolorosa interlocução entre mãe e filha sobre um misterioso e intrigante vestido deixado no cabide e que é motivo de segredo, angústia e discórdia.
Se no poema os personagens de Drummond não são identificados e há apenas o impacto da revelação de um vestido clandestino descoberto e as filhas intrigadas com o fato diante da mãe, no romance eles têm nome; essa personificação confere maior dramaticidade a um texto popularizado por um dos maiores poetas da língua portuguesa. Justamente esse aspecto teatral do drama possibilita outros olhares e leituras e Herculano aproveitou a deixa para uma competente e sensível reelaboração, sem perder o fio da meada.
No romance, a mãe (Ângela), colhida de surpresa pelas filhas (Clara e Ritinha), quando chorava com um vestido que veio parar misteriosamente em sua casa, é questionada sobre o sumiço do pai (Ulisses) e o porquê de seu lugar sempre vago à mesa. A partir daí desfia-se a história, em linguagem dramática e poética, com a revelação do pivô do desaparecimento, a amante Bárbara, namorada de Fausto, um investigador obsessivo e frio. Ela chega à cidade, vinda do Rio de Janeiro, seduz Ulisses, que se rende à paixão devastadora. Mas Ângela, surpreendentemente, consente, por amor ao marido, que ele durma com a forasteira e sucumbindo aos seus encantos, abandona a família, vai correr mundos com Bárbara, estabelecendo-se com ela num garimpo.
O autor recambiou o poema para a ficção, situando-no em Vila Dourada, no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres de Minas, sem desviar-se dos aspectos psicológicos e temporais, narrado em primeira pessoa pela mulher traída. No entanto, Herculano cria outros cenários, entremeado de lutas políticas, dissensões pessoais, violência, acrescentando ingredientes picantes e outros personagens à trama, sem prejuízo da originalidade. Com isso, conferiu maior emoção e densidade à história nas novas vozes que se alternam e que adquirem uma dimensão épica, com o retorno de Ulisses ao seio da família, depois de sua fracassada aventura à Ítaca desconhecida, um amor impossível. Há também, na figura de Fausto (que no passado namorou Ângela e a perdeu para Ulisses, que agora o retira Bárbara), uma sutil analogia, às avessas, ao personagem goethiano, que buscava vida eterna, e no romance, é o amor eterno que busca e nunca consegue alcançar, porque o perde duas vezes para o mesmo Ulisses.
Esses dois livros de Carlos Herculano Lopes não só revelam o talento e a versatilidade de um grande autor, mas consolida definitivamente seu nome entre os grandes escritores contemporâneos.