Diversão e nada mais

Torero e Pimenta pecam pela graça na hora errada em "O evangelho de Barrabás"
José Roberto Torero, autor de “O evangelho de Barrabás”
01/10/2012

[Pôncio Pilatos] saiu de novo, foi ter com os judeus, e disse-lhes: ‘Não acho nele crime algum. Mas é costume entre vós que pela Páscoa vos solte um preso. Quereis, pois que vos solte o rei dos judeus [Jesus Cristo]?’ Então todos gritaram novamente e disseram: ‘Não! A este não! Mas a Barrabás!’ (Barrabás era um salteador.)”, está na Bíblia Sagrada, evangelho de João, capítulo 18, versículos 38 e 39. No livro de milhares de páginas, Barrabás aparece também nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, mas sempre na mesma cena, em condições semelhantes e, como devem saber, o mesmo desfecho. Pequena participação na história, mas suficiente para que muitos vissem o homem salvo como um dos culpados pela morte do “salvador”.

É a história deste homem que José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta imaginam para escrever O evangelho de Barrabás. A obra, que ainda conta com poucas e boas ilustrações de Paulo Brabo, é mais um fruto de uma longa parceria. Torero e Pimenta já dividiram a autoria de 13 livros.

A introdução de O evangelho de Barrabás já antecipa o tom bem-humorado que permeia todo o texto, uma sátira aos evangelhos. Ela fala das folhas que deram origem à obra, encontradas no início de 2010, quando os autores, que se definem como biblioarqueólogos, participavam de uma expedição às cavernas de Qumran, próximas ao Mar Morto, e, ao precisarem de um canto para aliviar as “bexigas cheias” puseram-se a explorar estreitos corredores de uma gruta até encontrar uma ânfora de barro. No último momento, antes do fazer fisiológico, perceberam que dentro do objeto havia um rolo de papiro, exatamente o Evangelho de Barrabás. Referir-se a um suposto documento para dar certa credibilidade e maior verossimilhança ao texto que se sucede não é nenhuma novidade na literatura. Para ficarmos apenas em um paralelo, João Ubaldo Ribeiro construiu um início semelhante em A casa dos budas ditosos.

A história em si de O evangelho de Barrabás começa de maneira um tanto familiar, ao menos para quem vem de família católica. José se casa com Maria que, logo em seguida, anuncia que está grávida, apesar de ainda ser virgem. O homem recém-casado acredita em sua mulher e diz para todo mundo que a gestação fora anunciada por um anjo. Contudo, para que não ousem contradizer sua palavra, dá a cada homem de seu povoado um cordeiro, a cada mulher, um anel e deixa bem claro para todos, caso alguém não acredite na história da intervenção divina, que devolva a oferenda.

Antes que os religiosos mais fervorosos comecem a berrar que os autores cometem sacrilégios, que deturpam a história de José e sua Virgem Maria, que maculam a sagrada geração de Jesus, vale o alerta: O evangelho de Barrabás é um livro que não possui grandes virtudes, mas as quebras de expectativa são realmente bem construídas. Os fatos induzem o leitor a um pensamento lógico formado pelo conhecimento histórico e da mitologia cristã. Entretanto, às vezes, ao cabo da passagem, tudo é revertido — sem deixar de fazer sentido dentro da lógica da ficção — em apenas uma frase.

Como não poderia ser diferente, os elementos bíblicos abundam na história. A própria força motriz do livro é a conturbada paixão de Barrabás pela polêmica Maria Magdalena, moça que se envolve com diversos homens — um de cada vez, vale dizer, e nunca por dinheiro — por sempre acreditar que o atual parceiro é o verdadeiro profeta.

Diferentemente dos evangelhos tradicionais que retratam o mesmo período da história, em nenhum momento Jesus é diretamente citado no livro, mas não há como não comparar Barrabás, que chega a ser visto como um homem santo, ao símbolo máximo do cristianismo quando o protagonista deste evangelho, por exemplo, transforma água em vinho ou parece andar sobre a água.

Apesar de o livro ter bons momentos de humor, como nas comparações inusitadas e, principalmente, os proporcionados pelos comparsas de Barrabás — a começar pelo ritual que cumprem em momentos decisivos: todos ficavam em círculo, seguravam os testículos daquele à sua direita e juravam morrer uns pelos outros —, o texto não chega a empolgar.

Os autores perdem a mão até mesmo nas próprias passagens cômicas, que tão bem constroem em outras ocasiões. Pecam pela graça na hora errada. Nos raros momentos de drama, as piadas tornam-se desnecessárias. Fica parecendo o humor dos filmes pastelões, que se propõem a fazer o espectador rir de tudo, tornando-se modorrentos.

Não bastasse a falta de cuidado para trabalhar com o humor, que é a principal força da obra, Torero e Pimenta não conseguem criar (sequer tentam, na verdade) o clima de tensão que determinadas passagens merecem, isso prejudica e muito o envolvimento do leitor com a história. Falta densidade psicológica, reações, emoções.

Como a composição dos personagens, a estrutura de O evangelho de Barrabás também é bastante simples e linear. Fica claro que o objetivo de Torero e Pimenta era simplesmente contar uma história, somente isso.

Nada de pêlo em ovo
Pequenas marcas em O evangelho de Barrabás poderiam proporcionar grandes interpretações aos mais entusiasmados. Logo no primeiro parágrafo do primeiro capítulo, por exemplo, está escrito “Era os dias em que Joazar governava o Templo, Herodes governava a Judéia, Otávio Augusto, o mundo, e Deus, tudo”. Se alguém quiser procurar mensagens nas entrelinhas, poderá dizer que os autores iniciam a obra já mostrando como Deus perdeu espaço nos dias atuais. Afinal, se aqueles eram os dias em que o todo-poderoso governava tudo, então atualmente não é mais assim, certo?

Em outro momento, a narrativa insinua que o povo da época acreditava em qualquer um que se dizia mensageiro de Deus, o que poderia ser visto como uma crítica à maneira como as pessoas lidam com a religião hoje em dia, apegando-se a qualquer um que afirme ser o dono na terra da palavra do Senhor.

Até uma referência ao bullying poderia ser encontrada. Na escola, Barrabás era alvo de chacota dos colegas, que lhe atiravam pelotas de barro e o chamavam de “Caçulinha do senhor”, “Filho de Pomba” e “Pequeno Altíssimo”, simplesmente porque teria sido gerado a partir do “santo excremento” de uma pomba.

A interpretação é livre e cada um analisa o texto à sua maneira. Todavia, por mais que alguns leitores adorem descobrir mensagens implícitas, não é nenhum tipo de polêmica com Deus, análise da presença divina ao longo dos tempos ou a forma como as crianças lidam umas com as outras na escola que o livro de Torero e Pimenta se propõe a fazer. Os autores contam uma história que visa divertir de maneira fácil o leitor, nada mais.

O evangelho de Barrabás
José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta
Objetiva
224 págs.
José Roberto Torero
É escritor, cineasta, roteirista e jornalista. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti de 2005), Terra Papagalli e Os vermes, os dois últimos escritos em parceria com Marcus Aurelius Pimenta.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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