Ditos e desfeitas

Antologia poética da portuguesa Adília Lopes mostra uma autora econômica, satírica e picaresca
Adília Lopes: “Detesto o sofrimento”
01/02/2003

Um dos melhores livros de poesia e mais saborosos lançados no Brasil em 2002 é de uma portuguesa: Adília Lopes. A Antologia reúne treze obras da autora e demonstra que a escritura feminina corre muito além do estilo confessional, dolorido e catártico. Na poesia, não é preciso sofrer para ter alguma coisa a dizer. Como mesmo esclarece um dos versos da coletânea: “Detesto o sofrimento”.

Adília não confia na pureza dos sentimentos. Desconfiando que a gente começa a viver. É econômica, satírica e picaresca. Menos mística que Adélia Prado. Menos filosófica que Orides Fontela. Menos experimental que a portuguesa E. M. Melo de Castro. Menos lírica que sua conterrânea Maria Teresa Horta. Menos musical que Fiama Hasse Pais Brandão. Menos mítica que a legenda Sophia de Mello Andresen. Ela é sempre o menos com a máxima intensidade. Oferece a loquacidade do mínimo, a persuasão dos ditos e desfeitas. Comove com a simplicidade vocabular, a lapidação ríspida entre os versos, provocando efeitos narrativos e de rápido encadeamento. Prepara sinopses, epítetos, epígrafes. No poema Microbiografia, diz “esse teu vestido!/ já tinha idade para ir à escola”. Na descrição de uma única peça, assim como Drummond já empreendera em O caso do vestido (A rosa do povo), sintetiza o percurso de uma família. Não perde tempo, torna tátil e objetiva toda subjetividade. Faz poesia para engasgar o choro com o riso. O humor já desarruma os títulos: O decote da dama de espadas, Florbela Espanca espanca, Clube da poetisa morta e assim por diante.

Seus poemas isolados não causam tanto impacto como seqüenciados e envolvidos em uma linha temática. São fragmentos dependentes uns dos outros, na valorização do conjunto, da visão perturbada de mundo. A escritora elabora parábolas, pirateando o senso comum e citações. Não idealiza a infância, muito menos subestima as crianças. De uma matriz infantil, suga a complexidade adulta, produzindo versões contemporâneas e letais de fábulas, tal como acontece em A bela acordada. Há a presença maciça do “era uma vez”, mais como sinônimo de mentira do que do pacto emocional. Os contos de fadas são convertidos em contos de fados. O sucesso depende da consciência do desastre.

Narradora intrusa
As microhistórias, na maioria despretensiosas, cativam pela honestidade e autocrítica. A autora não exalta as afeições nobres, porém procura as diferenças entre o óbvio e o visível, resumindo a vida em rápidos croquis. De uma maldade didática, suas frases retornam ao mesmo ponto, repetindo o enunciado de outra forma. “Não por ter vergonha de assinar romances escabrosos/ mas para tornar ainda mais escabrosos os romances.” Descobre o potencial nos contrários: “há muito de luxúria na miséria mais extrema”. Fisga a atenção ao fomentar um permanente descrédito com a veracidade das situações. Empresta tintas autobiográficas às personalidades literárias como Marianna Alcoforado, Emily Dickinson e São João da Cruz. Descreve cenas prosaicas, estilizando-as mediante quadros e referências às artes plásticas (Van Gogh, Delacroix, Ucello). Carrega nos pronomes possessivos e na primeira pessoa, fornecendo instantaneidade aos relatos poéticos. Utiliza biografias emprestadas para amplificar a reação de sua realidade pessoal. Trata-se de uma poética da negação afirmativa. A vivência se nega para corrigir e acrescentar um dado. Um exemplo:

“6.
Nasci em Portugal
Não me chamo Adília

7.
Sou um personagem
de ficção científica
Escrevo para me casar

8.
Que morra Marta
mas que como Maria
morra farta.”

Em todo momento, Adília aparece para contradizer sua existência, numa vaidade ao avesso. Envenena a ficção com indícios autênticos. Como alguém que joga intermediários para mentir as verdades. “Há sempre quem diga de um poema/ que ele é bom/ para a seguir lhe mostrar um poema/ e ouvir dizer que ele é bom”. É possível perceber o quanto emana de suas poesias a necessidade do auto-retrato, o questionamento da identidade textual, como em Anonimato e Autobiografia e Autobiografia sumária de Adília Lopes. “Os meus gatos gostam de brincar com as minhas baratas”. Ela expõe uma simpatia pela covardia e renúncia. O elo de ligação com sua arte é a facilidade com que os protagonistas — que não deixam de ser heterônimos — administram os medos. A encarnação perfeita das fobias é o poeta de Pondichéry, que batiza um dos grandes livros de Adília Lopes. O personagem se aconselha com Diderot, que logo dissuade o rapaz de seu talento e o orienta a enriquecer e seguir a profissão paterna de joalheiro. O jovem não consegue sobreviver ao descaso de Diderot, à impiedosa crítica. Consegue fortuna, mas não esquece do encontro intelectual, espécie de profecia de sua mediocridade. Perde a riqueza e termina preso numa cela de asilo, onde redige seus péssimos poemas nas paredes com a “unha do indicador direito”. O final é pungente, evidenciando a fragilidade do futuro e a paranóia da criação: “penso primeiro que é Diderot/ que me vem visitar/ mas lembro-me de que Diderot morreu/ e fico com medo de que seja alguém/ para me cortar as unhas”. Ler Adília Lopes faz qualquer um emagrecer a voz e respirar aliviado diante de problemas e traumas. Melhor do que os remédios e a tradicional poesia depressiva e verbor(t)rágica, que obrigam o leitor e a estante a “engordarem 30 Kg”.

Antologia

Adília Lopes
Cosac & Naify e 7Letras
230 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho