🔓 Distinto outsider

Morto há 80 anos, Walter Benjamin redefiniu o papel do ensaísmo crítico e se tornou um dos intelectuais mais importantes do século 20
Ilustração: Miguel Rodrigues
19/09/2020

Oitenta anos depois da sua morte, Walter Benjamin cumpriu sua ambição de se tornar o “primeiro crítico da literatura alemã”. Além disso, ele tem seu lugar entre os pensadores mais originais e citados de sua época, e que recebe substanciais homenagens, como a recente biografia de Antonia Grunenberg, Götterdämmerung – Aufstieg und Fall der deutschen Intelligenz 1900-1940. Walter Benjamin und seine Zeit [Crepúsculo dos Deuses — Walter Benjamin e sua época][1]. Aproveitando a efeméride, este ensaio homenageia ao mesmo tempo Benjamin e o belo retrato que Grunenberg fez do autor, de sua obra e de toda a época contraditória e destruidora em que o autor viveu.

Benjamin nasceu em Berlim, em 1892, e aí recebeu sua educação escolar — com uma marcante interrupção de dois anos que passou em Haubinda, um internato com princípios educacionais novos, cujo diretor, Gustav Wyneken, despertou o sentido de liberdade e de comunidade nos seus alunos, além da revolta da juventude contra a rígida tutela patriarcal que prevalecia nas instituições tradicionais do estado (e em parte também nas famílias).

Benjamin inicia seu percurso intelectual nos movimentos de juventude até romper com Wyneken, em 1915, revoltado com o patriotismo bélico do antigo mestre. Dessa época datam textos aforísticos como Metafísica da juventude e pequenos tratados neomísticos hoje menos apreciados que outros textos do autor.

Já nesse tempo de amizades intensas, Benjamin reivindicava absoluta liderança intelectual, sem temer abruptos rompimentos com quem não o reconhecesse como tal. Essa confiança no próprio valor intelectual que fez de Benjamin um scholar, não exclui o desbravador de novos caminhos — seu rigor filosófico convivia com o espírito místico e a imaginação artística.

O savant de conhecimentos enciclopédicos percebia a importância da cena vanguardista em Berlim, Zurique e Paris e descobriu o papel capital da linguagem para o pensamento, operando uma guinada epistemológica; o pensador moral e poético busca saídas dos impasses políticos e sociais, sem perder de vista as virtudes da tradição religiosa. Como defini-lo? Como historiador da religião e do misticismo judaico, crítico literário e da cultura, filósofo-sociólogo, editor e educador?

Esse homem de aparência professoral tinha nos projetos intelectuais e políticos os mesmos impulsos radicais que se mostraram nas suas amizades, e pautava suas ideias utópicas e metafísicas no potencial revolucionário da arte. A riqueza de seus projetos, espraiados em vários sentidos e entre disciplinas diversas, confinou-o a uma dependência financeira que durou a vida toda — no início dos pais, depois da (ex) mulher e dos amigos. Mas, apesar dessa dependência material, ele sempre soube afirmar sua autonomia intelectual.

Enfoque peculiar
Ainda em Munique, engajado nos movimentos de juventude, Benjamin conheceu Dora Sophie Pollak, em 1914, e casou com a talentosa jornalista nascida em Viena, depois da ruptura com a primeira noiva, Grete Rath, e o divórcio de Dora com o senhor Pollak. Graças ao dom hipnótico de Dora, Benjamin (um dos raros pacifistas da época) é declarado inapto para o serviço militar e escapa da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) em Zurique, onde nasce seu filho Stefan.

Nesses anos de guerra, ele prepara a tese de doutorado e seus primeiros grandes trabalhos — O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, As afinidades eletivas de Goethe e o trabalho de habilitação sobre O drama barroco alemão. Essas publicações, no início dos anos 1920, já mostram o peculiar enfoque crítico e a deliberação com que Benjamin assume seu lugar de distinto outsider.

Cada novo ensaio é mais um desafio ao pensamento estabelecido: por exemplo, no modo de introduzir elos entre teologia, filosofia e política, entre ética e estética. As leituras intensas dos autores do Renascimento judaico-filosófico (Franz Rosenzweig, Martin Buber e Erich Unger, entre outros) reforçam seu interesse pela dimensão messiânica e redentora que ele busca incorporar na sua nova epistemologia; ela inflexiona o entendimento convencional da crítica literária, da dialética hegeliana e do materialismo histórico. Benjamin introduz no dinamismo da imagem dialética o elemento da quietude, que assegura a unidade paradoxal do fluir da história revelado numa imagem aparentemente contingente. Benjamin é aberto a tantos impulsos que já não se pode mais falar de influência, nem de Scholem ou Martin Buber, nem de Hölderlin ou de Florens Christian Rang, nem de Asja Lacis, Brecht ou Adorno. Todos eles foram capitais para Benjamin definir seu próprio estilo — ora em “proximidade quase simbiótica”, ora em franca oposição às ideias dos amigos.

Transgressão
O fio vermelho que vincula as muitas fases e rupturas da vida de Benjamin é sua curiosidade que se inflama com as margens e os detalhes anódinos que os outros desconsideram. Assim, por exemplo, quando lê Hölderlin — não como a maioria dos contemporâneos, que recuperaram os motivos patrióticos para o nacionalismo em ascensão, mas escolhendo justo dois poemas difíceis: Coragem de poeta e Tolice, que falam dos aspectos elusivos da linguagem poética que transporta o poeta e o leitor para uma outra dimensão, para além do mundo habitual, para um universo sem referências seguras.

O mesmo interesse pelo detalhe marginal prevalece também nos estudos em Munique, onde nada o impressiona, fora um seminário sobre a penitência no cristianismo primitivo (ele e quatro monges são os únicos inscritos); ele ama o olhar oblíquo induzido ora por assuntos bizarros, ora por estados alterados (transe, êxtase, embriaguez), ora por um estilo de pensamento caprichoso como o do romântico Franz von Baader, cujo pensamento salta da tradição retórica medieval para considerações modernas, sempre transgredindo as fronteiras tradicionais entre gêneros e disciplinas.

Assim, ele examina com a mesma ávida curiosidade as Confissões extáticas de um scholar como Martin Buber e as experiências esotéricas do círculo cosmogônico e em torno de Ludwig Klages e Alfred Schuler. Cada novo ensaio busca abrir acessos não convencionais para obras conhecidas ou ignoradas, pregando o desmantelamento dos hábitos acadêmicos, de métodos consagrados e disciplinas delimitadas. Todas as experiências marcantes o levam a inverter a perspectiva histórica, positivista, humanista e totalizante, privilegiando os elementos estranhos ou negligenciáveis da vida e da arte; sua sensibilidade eleva a experiência estética a uma disciplina epistemológica que formaria o centro da reflexão filosófica, destronando, por assim dizer, o pensador racional desafiado por algo excêntrico. Ele coloca a base epistemológica do conhecimento filosófico na linguagem — como mostram os ensaios Destino e caráter, A relevância da linguagem no lutilúdio e na tragédia ou A tarefa do tradutor, entre outros.

Guerra intelectual
As múltiplas exigências (um tanto tiranas) da vida intelectual, a liberdade afetiva (já muito moderna) do casal e a dependência material de Benjamin (ora dos pais, ora da fortuna de Dora Sophie, ora do trabalho da talentosa escritora, jornalista e tradutora) começam a dilacerar a jovem família no início dos anos 1920.

Charlotte Wolf, amiga do pensador alemão, anotou o drama do casamento dele nesses meses da redação do ensaio sobre As afinidades eletivas de Goethe (publicado em Neue Deutsche Beiträge, em 1924). Benjamin admirando a escultora Jula Cohn, que nada quer com ele além da amizade, mas mesmo assim mora com o casal (na casa dos sogros!) porque Benjamin “precisava da inatingibilidade de Jula”, enquanto Dora Sophie mantinha relações amorosas com Ernst Schön — um dândi elegante, amigo de juventude de Benjamin e seu radical contrário.

Ficcionalizando a própria vida, Benjamin redefine o papel do ensaísmo crítico e declara guerra intelectual a críticos consagrados como Friedrich Gundolf ou Hermann Cohen — quase proclamando sua vitória sobre eles. Esse traço belicoso de rivalidade e luta intelectual sem dúvida pertence ao clima intelectual da época, porém produziu na obra de Benjamin textos esquisitos; por exemplo, um elogio fúnebre de Rainer Maria Rilke (1875-1926), que fala pouco e mal de Rilke, enquanto faz um violento acerto de contas com Franz Blei (1871-1942), um dos críticos literários influentes na época.

Quando a guerra termina — com sangrentas batalhas de rua e uma verdadeira guerra civil abalando Berlim de novembro 1919 até os primeiros meses de 1920 —, Benjamin tem 27 anos, pouco afeto pela jovem República de Weimar e quase nenhum interesse por política. Isso muda na primavera de 1924, em Capri, quando encontra Asja Lacis — a lituana bolchevique abala e redirecionaria toda sua visão de mundo, como o próprio Benjamin confessa na dedicatória de Rua de mão única.

Asja, a diretora de teatro, a mulher com convicções político-revolucionárias e a mãe de uma filha, abre o horizonte para uma tarefa grandiosa e digna — a construção de um novo mundo, que exige pôr-se à serviço de uma forma radicalmente diversa de estado, fazendo arte educativa e teatro de propaganda. A postura de pensador-mandarim é abalada: “Eu pertenço à última geração a receber uma educação apolítica”, escreve Benjamin, já atraído para dentro da órbita de Asja, que o introduz a Brecht e toda uma cena intelectual engajada em projetos políticos. A nova Rússia promete alternativas ao liberalismo ruinoso que os jovens intelectuais identificavam com a República de Weimar — nesse ponto existe uma estranha concordância de pensadores dos polos opostos do espectro político: M. Heidegger, K. Jaspers e C. Schmitt, como também Joseph Roth, B. Brecht e W. Benjamin.

Entre 1924 e 1926, Benjamin hesita entre planos de se estabelecer como crítico independente vinculado a uma editora importante como Rowohlt ou, caso esse plano fracasse, o ingresso no partido comunista, na esperança de poder estabelecer-se nos círculos intelectuais de Moscou.

Guinada do pensamento
Essa ideia irá se revelar ilusória durante a viagem a Moscou em dezembro de 1926 (até fevereiro 1927), onde encontra Asja no hospital; sem falar russo, ele depende do companheiro de Asja, Bernhard Reich, como guia e intérprete. Revela-se o ônus da distância crítica do outsider: Benjamin é convidado a escrever um verbete sobre Goethe para a Enciclopédia Soviética, mas a redação introduz coautores e dogmas políticos que tornam toda a apresentação benjaminiana irreconhecível.

Embora tenha ficado fascinado pela “reformulação de toda a esfera do poder e do governo [que] faz a vida aqui tão extraordinária e plena de conteúdo”, Benjamin percebeu também as contradições gritantes da Revolução Russa. “Cava-se dia e noite em busca de poder”, mas o que cresce exponencialmente é o “poder de iniciados, cujas decisões são tomadas com base em rumores ou contatos pessoais”; tudo favorece o “amplo poder dos funcionários que decidem coisas das quais nada entendem, de modo que conhecimento e expertise se tornam dispensáveis”.

Benjamin procura conjurar as impressões de sua viagem a Moscou numa autoapresentação da cidade em imagens condensadas: “A conversa surreal com um empregado do hotel, o bonde, a decoração natalina e os brinquedos vendidos nas ruas, um mapa da Europa na perspectiva do comunismo, os ares de vilarejo em algumas partes de Moscou, as igrejas…”.

Essa técnica será mais tarde levada à perfeição nos grandes ensaios sobre Paris — Capital do Segundo Império, numa língua na qual Benjamin se sente à vontade e numa cidade que lhe propiciou, no entender do amigo Scholem, um “processo de fermentação, de abertura e travessia para novas margens que ele próprio mal vislumbrara”. O ensaio O surrealismo — Último instantâneo da inteligência europeia evidencia a guinada política de seu pensamento, e a tentativa de articular a concretude terrena com as dimensões mítica-fantasmagórica e a transcendente. Ele apresenta o núcleo dialético do surrealismo como o amálgama da embriaguez com a explosão revolucionária — um potencial capaz de transformar o abalo místico em inspiração profana —, uma teoria que mais “tem o sabor do anarquismo de Auguste Blanqui e de Georges Sorel, do que o de Marx e do partido comunista” e que os intelectuais, funcionários e líderes russos ignoraram liminarmente.

Em 1929, Benjamin concorda com História e consciência de classe, de Georg Lukacs, vislumbrando a superação da sociedade e da cultura capitalistas pelas massas, enquanto os intelectuais, artistas e críticos se empenhariam na educação e nas técnicas de organização e reestruturação.

Dez anos depois, suas Teses sobre o conceito de História apresentariam a História como interminável sucessão de catástrofes: visão sombria, registrada sob o choque do pacto de não agressão entre a Rússia de Stalin e a Alemanha nazista concluído em 24 de agosto de 1939 pelos generais Molotov e Ribbentrop.

Inconformismo e influências
Nos anos de 1930, as amizades com Adorno e Gretl[2] e com Scholem e Brecht tornam-se cada vez mais a base para a sobrevivência material e intelectual de Benjamin e também uma fonte de atritos, pois o pensamento peculiar de Benjamin — sempre suspenso entre enfoques caleidoscópicos que desafiam o conceito — não se conforma facilmente às exigências metodológicas mais focadas de seus amigos — nem as de Scholem ou Asja Lacis, nem as de Adorno, Gretl Karplus, Max Horkheimer e do grupo do Instituto de Pesquisa Social.

A amizade com Adorno começou em Berlim, no início dos anos 1920, e será mantida por correspondência quando Benjamin foge em março de 1933, um mês após a chegada ao poder de Hitler, enquanto Adorno se muda com o Instituto de Pesquisa Social para Londres e Oxford, e depois para os Estados Unidos. A amizade oferece a ambos aquela redoma da reflexão que lhes permite manter o equilíbrio em tempos difíceis: “Espero que logo possa me isolar contra tais impressões [do fascismo parisiense] mergulhando no material do meu trabalho”, diz Benjamin em outubro 1937, atormentado pelo clima opressivo nas ruas.

O apoio financeiro do Instituto exerce certa pressão sobre o estilo de Benjamin, cuja lógica poética é mais próxima de Hölderlin do que da dialética de Hegel ou de Marx — que Adorno lhe recomenda. Com seus onze anos a menos e energia de sobra, Adorno parece querer definir uma linha, ora como “amigo-mecenas”, ora como “censor”, como observou Bruno Tackels, impondo a Benjamin certa “ortodoxia marxista” (um tanto rígida para o gosto de Giorgio Agamben). O estilo ensaístico inovador de Benjamin e seu pensamento utópico, poético e quase místico não se adequam com facilidade ao programa do Institut für Sozialforschung.

A carta de 31 de maio de 1935 dá a impressão que Benjamin ficou dividido entre duas influências “decisivas” — a de Brecht, que foi um marco, embora tenha trazido “todas as aporias a esse trabalho [das Passagens]”, e a de Adorno, que se opõe ao “marxismo vulgar” de Brecht e procura superar essas aporias, para o Jornal de Pesquisa Social poder aceitar o manuscrito para publicação.

Por mais que os amigos se estimulem com reflexões em torno das Passagens, as exigências objetivas do Instituto obrigam Adorno a pressionar Benjamin a entregar textos. Enquanto este já se alegra-se com a ideia de ver a segunda parte de seu Baudelaire publicado, recebe a mensagem da “decepção” do amigo com o enigmático estilo alusivo de Benjamin, que não se conforma ao “modelo” teórico do Instituto de Pesquisa Social. A minuciosa carta de Adorno arrola falhas metodológicas e termina com o diagnóstico fatal: “Temas são reunidos, mas não elaborados”. Benjamin quase suplica que o texto seja publicado, ponderando que: “Nesse formato poderia servir como base para discussão, o que — por insuficientes que sejam seus parceiros locais — poderia compensar em certa medida o isolamento em que trabalho”.

É trágico ler essas linhas hoje, sabendo que já não havia muito tempo para os ajustes finos. O Instituto está em apuros depois de alguns investimentos infelizes; a ajuda para Benjamin está por um fio; Adorno prevê que “uma nova crise europeia é iminente”, e de repente o blefe dos líderes nazistas se transforma, de fato, em algo sério e fatal para Benjamin.

Sete meses mais tarde, a França é ocupada. Benjamin tenta sua última fuga. Em 26 de setembro 1940, ele escreve sua última nota a Adorno, antes de cometer suicídio. O ensaio A Paris do Segundo Império ainda esperava sua publicação.

 

NOTAS

[1] A. Grunenberg, Götterdämmerung – Aufstieg und Fall der deutschen Intelligenz 1900-1940. Walter Benjamin und seine Zeit. Herder, 2018. Outra fonte importante é Th. W. Adorno-W. Benjamin. Correspondência 1928-1940, Unesp, 2012.

[2] A imensa influência do pensamento de Benjamin sobre Adorno é manifesta nas 121 cartas trocadas entre Adorno (1903-1969) e Benjamin (1892-1940), entre 1928 e 1940, ano da morte de Benjamin.

 

Ler o livro do mundo – Walter Benjamin romantismo e crítica poética
Márcio Seligmann-Silva
Iluminuras
238 págs.
Passagem de Walter Benjamin
Pierre Missac
Trad.: Lilian Escorel
Iluminuras
256 págs.
Walter Benjamin
Nasceu em Berlim (Alemanha), em 1892. Foi ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo. É autor do clássico “Passagens”. Morreu na Espanha em 1940.
Kathrin Rosenfield

Nasceu em Salzburg/Áustria, se formou em Paris, Viena e Salzburg (Literatura, Psicologia Clínica e Antropologia Histórica). Veio ao Brasil em 1984 e é atualmente professora titular de filosofia e literatura na UFRGS. Autora de vários livros sobre literatura e filosofia, arte e estética, com monografias abordando autores como Machado de Assis e João Guimarães Rosa, Simões Lopes Neto e Clarice Lispector, J. M. Coetzee, T. S. Eliot e Robert Musil, Shakespeare e Sófocles, Goethe e Hölderlin.

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