Distância e proximidade ignoradas

Memórias do colombiano Héctor Abad resvalam em idealizações literariamente rudimentares em torno da figura paterna
Héctor Abad, autor de “A ausência que seremos”
01/10/2011

É raro um autor desconhecido e iniciante estrear na literatura com um livro de memórias (“não ficção”), a menos que a temática de fundo e/ou a experiência direta sejam bombásticas. Não é o caso de A ausência que seremos e tampouco de seu autor. Héctor Abad possui uma obra de ficção abrangente, com romances premiados, como Basura (2000), e algumas coletâneas de ensaios relevantes, como Las formas de la pereza (2007). Esteve na Flip-2011. Mas esta narrativa, a primeira dele à disposição em português, e que foi premiada em Portugal ano passado, é (auto)biográfica.

Seria relevante a “estréia” desse colombiano entre os leitores brasileiros? A julgar pela obra em si, não. O memorialismo de A ausência que seremos, construído em torno do pai, cujo assassinato nunca foi esclarecido, é tão purista quanto idealizado. Abad procura justificar no texto a importância de seu projeto narrativo e a dificuldade de lidar com os meandros da memória, ciente de que a recordação é uma cópia do original e de que o apontamento é uma cópia da recordação. Mas não convence.

Na página 113, assume que “é pela memória dele [o pai] que procuro ser menos mau do que minhas inclinações naturais indicam”, na crença férrea de que se hoje Héctor é o que é “foi simplesmente porque meu pai me amou como eu era”. Mas a memória, nas palavras do próprio Abad, “é um espelho opaco e estilhaçado, feito de conchas intemporais de lembranças espalhadas em uma praia de esquecimento”. As imagens se perdem e as palavras só resgatam algumas sombras. (Os memorialistas contemporâneos, aliás, adoram essas formulações “meta-memoriais”.)

Por que questionar um texto assumidamente memorialístico, no qual os fatos têm necessariamente de estar mesclados a uma dose considerável de ilusão? Em termos factuais, não duvido do que Héctor conta. Devemos assumir que o narrador-protagonista de um texto vendido como não ficcional é soberano até quando delira, e que o Discurso do Eu contém (tem de conter) ficção. Mas me parecem esteticamente discutíveis a estrutura do livro e a maneira rudimentar com que o autor retrata o dr. Abad Gómez, seu pai, em torno do qual a narrativa gira.

A primeira metade do livro não passa de uma homenagem rasa a um pai quase inumano, de tão perfeito (“sem esse amor exagerado que meu pai me deu, eu certamente teria sido uma pessoa muito menos feliz”). O derramamento nostálgico atinge um grau de sentimentalismo desconcertante. Mesmo nos raros momentos em que algum sinal de autoconsciência emerge no texto, fica a impressão de que a emenda é pior que o soneto (“não quero fazer uma hagiografia nem me interessa pintar um homem alheio às fraquezas da natureza humana”).

O pai-herói
Independentemente dos exageros do filho, o sr. Abad Gómez parece mesmo ser um pai exemplar tanto quanto um profissional notável. Médico sanitarista e professor universitário, ele lutou pelas áreas globais da saúde pública na Colômbia entre as décadas de 1950 e 1980. Exercia a medicina de um ponto de vista puramente científico, sem contato direto com os pacientes e as doenças, às quais preferia prevenir em campanhas de vacinação ou educação sobre noções básicas de higiene. Politicamente, seu desprendimento mental foi incomum em um país subjugado por facções radicais, milícias paramilitares e governos corruptos.

Na Universidade de Antioquia, em Medellín, os conservadores o definiam como um esquerdista nocivo para os alunos, perigoso para a sociedade e livre-pensador demais em matéria religiosa. A Colômbia é um país extremamente católico, e em várias passagens Héctor narra suas experiências de menino em convívio com a religiosidade de suas cinco irmãs, sua mãe e avós. Além de único filho homem na casa, ele integrava uma minoria de “machos” dentro de uma família enorme e majoritariamente do sexo feminino.

Ao cair da tarde, todos, minhas irmãs e eu, nos sentávamos no oratório em volta daquela avó, e então começavam a brotar mulheres de todos os cantos da casa; mulheres parentes, mulheres da criadagem e mulheres da vizinhança, mulheres sempre vestidas de preto ou de marrom-escuro, como baratas, de véu na cabeça e terço na mão. A cerimônia do rosário era presidida pelo tio Luis, com sua batina velha e puída, suja de cinza, risonho e ao mesmo tempo iracundo, escandalizado e desolado pelos irremediáveis pecadores que todas as tardes era obrigado a absolver no seu confessionário privado.

Héctor se recorda do dr. Abad Gómez, “herói da família”, desembarcando no aeroporto após uma viagem de trabalho com seu terno escuro, usando gravata e grossos óculos quadrados, a careca brilhando ao sol e “o olhar feliz” de sempre. O regresso do pai significava para o menino uma interrupção naquele “mundo sórdido” de terços, doenças, pecados, saias e batinas; de rezas, espíritos, fantasmas e superstição. “Acho que poucas vezes senti, nem devo voltar a sentir, uma paz e uma felicidade como aquelas, pois lá vinha meu salvador, meu verdadeiro Salvador.”

Mais tarde o dr. Abad Gómez suportaria o patrulhamento, os sarcasmos impiedosos e as críticas incessantes dos esquerdistas que substituíram os conservadores em certos postos acadêmicos da universidade, que viam nele um burguês tíbio e incorrigível por não endossar a luta armada. “Para ele, todo fundamentalismo era nocivo, não apenas o religioso, mas também o não religioso.” Sua voz de oposição à violência ecoava por todo o país pelas ondas do rádio e pelos artigos que escrevia em diários de Bogotá e Medellín.

Meses antes de ser assassinado, dr. Abad Gómez publicou seu último livro em vida — Teoría y práctica de la salud pública — no qual expõe claramente seu compromisso com a defesa dos direitos humanos e com a pacificação de seu país, aviltado por uma intrincada guerra civil que já durava décadas. “A alternativa é cada vez mais clara”, escreveu. “Ou nos comportamos como animais inteligentes e racionais, respeitando a natureza e acelerando o nosso incipiente processo de humanização, ou a qualidade da vida humana se deteriorará. (…) As espécies que não mudam biológica, ecológica ou socialmente estão fadadas a perecer depois de um período de inenarráveis sofrimentos.”

Nos trabalhos de campo, o médico era empático, segundo o filho. Tinha a capacidade de pôr-se no lugar do outro, de imaginar o que sentiria se sofresse uma situação análoga, pois a vida dá muitas voltas e o lugar do outro uma hora poderia ser ocupado por ele próprio: em dor, pobreza, opressão, injustiça, tortura, etc. “Se meu pai foi capaz de se compadecer de doña Fabiola e de seu filho desaparecido, foi porque ele podia imaginar perfeitamente o que sentiria numa situação como aquela, se minhas irmãs ou eu estivéssemos perdidos na névoa dos desaparecidos, sem nenhuma notícia.”

(O título do livro vem do poema Epitáfio, de Jorge Luis Borges: “Já somos a ausência que seremos/ O pó elementar que nos ignora/ que foi o rubro Adão, e que é agora/ todos os homens, e que não veremos”.)

Tédio e fragilidade
O que vigora em mais de duzentas páginas (dois terços do livro) são repetições entediantes, formulações frágeis e revelações que insinuam não uma admiração incondicional pela figura paterna, ou uma Carta ao pai kafkiana às avessas, mas uma obsessão aguda e sem contrapartida reflexiva. O autor diz que a primeira missão internacional do pai como médico da ONU “foi quase uma morte” para o filho, que suplicou à mãe que o deixasse dormir na cama do pai e pediu às empregadas que não trocassem os lençóis nem as fronhas, “para poder dormir ainda sentindo o cheiro do meu pai”.

“Fizeram o que eu pedi, pelo menos nas primeiras semanas, até o tempo e o meu próprio corpo suplantarem aquele cheiro maravilhoso, que ao meu nariz era símbolo de amparo e tranqüilidade.” Depois, já devolvido à “desolação” de sua cama e de seu próprio quarto, o garoto passa a esconder os postais e as cartas do pai embaixo do colchão, “e aquelas letras que traziam a voz do meu pai lá da Ásia eram minha companhia e o apoio secreto do meu sono”.

A dimensão doméstica da niñez de Héctor prevalece inadvertidamente, compondo um apanhado de apontamentos dispersos, ao qual o premiado escritor tenta dar uma ordem que resulta tão forçada quanto desconexa. Em lugar do tratamento eminentemente literário de que o dr. Abad Gómez é merecedor, Héctor mitifica-o. Uma idolatria tão desmedida como esta poderia funcionar em termos romanescos, mas não como uma narrativa que se pretende séria e de qualidade literária elevada.

Somente a partir do capítulo 34, ou seja, na última centena de páginas, é que o autor começa a se mostrar atento à dimensão pública de seu “deus biológico”, quando afirma ter puxado as lembranças de dentro de si como num parto, como quem tira um tumor. Na verdade, escreveu-as quase vinte anos depois do assassinato, ocorrido em 1987. Durante aquele período de “silêncio”, afirma, sentiu dia após dia que tinha “o dever inescapável”, não de vingar a morte do pai, mas pelos menos de contar a história dele.

É possível que tudo isso não sirva de nada; nenhuma palavra poderá ressuscitá-lo, a história de sua vida e de sua morte não dará novo alento a seus ossos, não trará de volta suas gargalhadas, nem sua imensa coragem, nem sua fala convincente e vigorosa, mas mesmo assim eu preciso contá-la. Seus assassinos continuam livres, a cada dia são mais poderosos, e minhas mãos não podem combatê-los. Somente meus dedos, afundando tecla após tecla, podem dizer a verdade e declarar a injustiça.

Mesmo como “declaração de injustiça” (único motivo, aliás, que poderia tornar o livro interessante e publicável), é uma narrativa acanhada demais para um escritor que hoje ocupa (por méritos) posição de destaque na fértil literatura de língua espanhola. Por fim, A ausência que seremos não é nem um bom romance, nem uma boa narrativa de memórias, nem um bom perfil (biografia, nem se cogita) e tampouco um bom ensaio pessoal (personal essay, nos moldes da melhor tradição anglo-saxônica).

Trata-se, no fundo, de um desabafo emocional recheado de frases úmidas, meladas por uma matéria lacrimosa lamentável, própria de quem não foi capaz de lidar com a proximidade, o distanciamento e a auto-análise que esse tipo de texto exige. O melhor momento do livro, talvez o mais tocante, está bem no final, quando o autor transcreve o trecho de uma carta que o dr. Abad Gómez escreveu-lhe em 1984, quando seu filho morava na Itália e se sentia perdido e deprimido.

“O que nós queremos é que você viva”, escreve o médico. “E viver significa muitas coisas, melhores do que ser famoso, obter títulos ou ganhar prêmios. Acho que, quando era jovem, eu também tinha ambições desmedidas em matéria de política, e por isso não era feliz. (…) depois de muito inventarmos e complicarmos, as coisas são simples assim. É preciso matar esse amor por coisas tão etéreas como a fama, a glória, o sucesso…” Um pai tem o direito de mimar seu filhinho do coração. O ambiente literário, não.

A ausência que seremos
Héctor Abad
Trad.: Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni
Companhia das Letras
320 págs.
Héctor Abad
Nasceu em 1958 em Medellín, Colômbia, onde cursou filosofia, medicina e jornalismo. Acabou formando-se em Letras pela Universidade de Turim, Itália. Jornalista, escritor e tradutor, publicou os romances Assuntos de un hidalgo disoluto (1994), Fragmentos de un amor furtivo (1998), Basura (2000, prêmio Casa de América de Narrativa Inovadora, Espanha) e Angosta (2004, Prêmio Nacional de Melhor Romance Estrangeiro, China). Possui também dois volumes de ensaios — Palabras sueltas (2002) e Las formas de la pereza (2007).
Sergio Vilas-Boas

É escritor e jornalista. Autor de Perfis, entre outros.

Rascunho