Dispersa retórica

Renato Rezende se propõe a dizer algumas coisas sobre crítica, política e poesia, mas não diz quase nada
Renato Rezende, autor de “Poesia brasileira contemporânea: crítica e política”
15/10/2015

Poeta do livro, do vídeo e da performance, tradutor e ensaísta dedicado especialmente à elasticidade da arte contemporânea, Renato Rezende lança-se à crítica literária com Poesia brasileira contemporânea: crítica e política. Composto por sete capítulos, o livro é apresentado pelo autor sob o propósito de tratar da expansão do conceito de poema na contemporaneidade, o que, a seu ver, mantém a poesia atual e potente. A mais, Rezende afirma que os ensaios enfeixados no volume “nasceram da angústia de ser poeta e, mais especificamente, do desagrado com o estado geral de nossa crítica”.

Há afirmações — procedentes quando não generalizantes — de acordo com as quais a poesia contemporânea mais difundida nos grandes meios despreza a reflexão de teor político. Onde não se constata esse tipo de desprezo, costuma-se verificar algo simetricamente inverso: o privilégio das pautas sociais — sobretudo as referentes às minorias políticas — via de regra se dá a reboque do simplismo literário, a conduzir poemas ao ponto entre a retórica e o panfleto. Somando isso ao fato de haver no País um cenário político dos mais rasteiros (falo das instituições mais representativas e de seus ecos nas ruas e na internet), o título do livro de Renato Rezende sinaliza para uma abordagem promissora e necessária da poesia contemporânea do Brasil, pois todo contexto de miséria política tem dentre seus componentes a mediocridade da crítica, seja por uma estreiteza eventualmente intrínseca a ela, seja pelo cerceamento com que lhe tentam obstruir ou esterilizar.

A leitura, entretanto, não confirma o aprofundamento que se vislumbra no título, e por razões diversas, a começar pela redação e formatação do ensaio. Renato Rezende não é um acadêmico, e não convém esperar de sua autoria uma tese calcada nos rigores da ciência. Aliás, na medida em que as convenções universitárias podem resultar em gesso epistemológico, costuma ser agradável que um estudo independente revele seu caráter “solto” pela fluidez e até mesmo pela informalidade, quando, claro, esses fatores não se esgotam em si mesmos. Mas essa não é a tônica de Poesia brasileira contemporânea: crítica e política, porque suas cento e uma notas de rodapé (distribuídas ao longo de pouco mais de centro e trinta páginas de efetivo texto do autor) mais prejudicam do que contribuem para a leitura. O prejuízo não ocorre puramente pelo quantitativo das notas — e convém dizer que a facilidade da leitura não é aqui defendida como regra, como também não se defende a normatividade de seu oposto —, e sim pelo modo como se combinam a disposição delas (sobrepostas, em algumas vezes, num mesmo parágrafo ou período), sua extensão (fazendo pensar que os textos de muitas deveriam se incorporar ao texto principal) e até a dispensabilidade do que dizem algumas, como a 90: “Mas o que importa (sic) as diferenças, desde que você consuma e acredite não apenas que é livre, mas que lutou e conquistou sua liberdade?”. Ao lado disso, certas lacunas referenciais do ensaio trazem dificuldade ao leitor interessado na pesquisa de fontes, pois na equipada bibliografia consultada por Renato Rezende há autores que comparecem com mais de um estudo, e nem sempre a distinção é feita quando das citações. Registrem-se ainda, sobre o que desabona a redação do livro, certas incorreções ortográficas (eu grifarei os exemplos a seguir), como o equivocado emprego do acento grave (“Conservador aqui significa fiel à uma tradição”, p. 33) e o de acentos que distinguem o singular do plural – “Minha tese é que a poesia contemporânea brasileira se mantêm atual (…)” (p. 21).

Apanhado sem coerência
A concepção e a consequente estruturação do livro de Renato Rezende também não foram estabelecidas com felicidade. A começar pela segunda, falta a partes consideráveis do conjunto algum fator de coesão que lhes garanta coerência diante do todo. O capítulo Poesia e videoarte, por exemplo, soa como um apanhado de nomes e citações em tom de catálogo, algo que aumenta com as sete resenhas (em que a descrição prepondera) postas ao fim da seção, escritas em parceria com Katia Maciel. O capítulo subsequente, Poesia e política, é, em sua quase totalidade, um ensaio já publicado, “originalmente encomendado para a coleção Ciranda da Poesia, da EDUERJ, [que] foi escrito sobre o poeta Guilherme Zarvos”. Considerando que o capítulo seguinte — Poesia moderna e contemporânea — é uma conversa com o ensaísta e editor Sergio Cohn, na qual o Modernismo é assunto dominante, tem-se aí uma tríade capitular que não dialoga efetivamente com o livro, e é de notar que as três partes, juntas, dão metade do livro. Não tendo o autor apresentado sua obra como volume de textos dispersos, dentre os quais algum se destacasse a ponto de nomear a coletânea, é legítimo aguardar que os ensaios enfeixados componham uma unidade. Mas isso não ocorreu, tampouco se fez com que a incoesão se revelasse uma força.

Em se tratando da concepção da obra, a ausência de uma declaração prévia, que esclarecesse ao leitor com maior alcance suas razões e propósitos (isso ocorre apenas nas parcas nove linhas finais do capítulo Crítica e política, das quais algumas foram citadas no parágrafo inicial desta resenha), permite intuir que Poesia brasileira contemporânea: crítica e política é obra desprovida de súmula geral e de método interpretativo que efetuem uma substantiva resposta de Renato Rezende ao que lhe causa desgosto na crítica literária brasileira. De uma interpretação da poesia contemporânea que consorcia crítica e política, poder-se-ia esperar uma abordagem de poemas e poetas pelos vieses ideológico e partidário, a fim de se demonstrar como a política está presente (ou ausente, ou mal identificada) na atualidade. Também se poderia aguardar uma pesquisa de bastidores, para apontar como afinidades ideológicas podem determinar a presença de poetas em grandes eventos e em renomadas editoras. Ainda seria legítimo (dentre outras possibilidades) presumir que o livro observasse uma hipotética circulação de poetas pelos palcos e corredores do poder. Mas, sobre isso, as expectativas são vãs, e a única exceção recai sobre o capítulo Poesia e política, dedicado à obra de Guilherme Zarvos, o qual, como já dito, é obra essencialmente já publicada.

Quanto à crítica, Renato Rezende diagnostica impasses, nós cegos e problemas, sobre o que menciona poetas “como Vicente Franz Cecim (…), Leonardo Fróes, Roberto Corrêa dos Santos, Afonso Henriques Neto, entre muitos outros, que ainda estão longe de receberem (sic) a atenção que merecem pela contribuição que têm dado à literatura brasileira”. Apesar de reconhecer a importância de tais poetas, o autor não lhes dedica uma linha de interpretação. Rezende também sugere haver incapacidade da crítica de perceber a potência da poesia brasileira contemporânea, e que esta padece de falta de acompanhamento e de parceria teórica, mas ele mesmo diz que essa crítica é muitas vezes exercida pelos próprios poetas, o que se mostra contraditório e, no caso da crítica à crítica, retórico — algo que, enfim, diz muito do livro.

>>> Leia resposta de Renato Rezende a Marcos Pasche.

Poesia brasileira contemporânea: crítica e política

Renato Rezende
Azougue
160 págs.
Renato Rezende
Nasceu em São Paulo, em 1964. Estudou na Espanha, na Índia e nos Estados Unidos. Publicou os livros de poesia Passeio (2001), Ímpar (2005) e Noiva (2008). É também pintor, tradutor e ensaísta.
Marcos Pasche

É crítico literário.

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