Dispensável

Biografia baseada na obra e vida de Philip Roth apresenta pouca novidade
22/08/2016

Dependendo de nosso entendimento, a primeira biografia de Philip Roth mostra seu fracasso logo na epígrafe: uma citação que o escritor americano faz de Kafka em seu Zuckerman acorrentado, dizendo que se um livro não nos chega como uma pancada na cabeça, não devemos dedicar nosso precioso tempo a sua leitura. O intuito de Claudia Roth Pierpont (sem parentesco com o biografado), claro, é mostrar a frase como um norte estético de Roth, mas como bandeira de um texto inteiro (como as epígrafes geralmente funcionam) o resultado acaba sendo bastante triste, pois trata-se de um teste no qual as 480 páginas da historiadora não passam. Talvez seja um teste alto demais para ser cobrado de uma biografia literária, que, no bom entendimento do que constitui literatura, sempre há de ser secundária à obra: no entanto, mesmo se adequarmos a iniciativa a parâmetros modestos, sobram elementos questionáveis.

O erro está no projeto, detalhado na divulgação publicitária do livro e em sua introdução: são duas as fontes principais de Pierpont, os livros do autor e longas entrevistas e conversas que teve com ele para completar o projeto. O correr do texto é uma série de resenhas/análises da enorme obra de Roth, do primeiro ao último livro, detalhando o contexto do lançamento e da primeira recepção de cada um, salpicado com curiosidades a respeito dos acontecimentos de sua vida e a relação deles com os romances.

Problema atípico
A empreitada de uma biografia literária é ao mesmo tempo fácil e complicada. O interesse do texto advém da mera escolha do objeto (muitos dos leitores de determinada obra já colocando o livro na fila de leituras assim que ele é anunciado), mas o risco sempre presente, como já disse Foster Wallace em sua resenha à biografia de Borges, é estrutural: a tentação de resolver a literatura por meio das contingências da vida da pessoa que a compôs é muito grande, pois é um erro que serve principalmente para valorizar a própria empreitada, no sentido de defender que o leitor que não sabe da vida do autor detalhadamente não está preparado para entender “de verdade” sua obra.

O caso de Roth, no entanto, é perversamente diferente do da maioria. Trata-se de um autor que, sob máscaras de variada complexidade e distanciamento, narrou principalmente a si mesmo, sua experiência de existir em seu contexto, com grande argúcia e profundidade, mas com verdadeira obsessão egocêntrica. É também um autor cuja celebração pública pelo meio literário frequentemente aborda questões a respeito de sua vida, que por mais que no final (e auge) de sua carreira tenha se afastado dos círculos artísticos, fica longe do mistério de outros escritores como Pynchon, ou até mesmo J. M. Coetzee: a melhor forma de conhecermos o tenebroso primeiro casamento de Roth não é por meio de Pierpont, e sim pelo próprio Roth, em seu Minha vida de homem. Sua relação com o pai é mais proveitosamente acessada por Patrimônio; sua relação complexa com os Estados Unidos, com Pastoral americana junto com A marca humana. Sua relação com Israel, Operação Shylock, etc. etc.

Pierpont escreve a primeira biografia de Roth provavelmente querendo ser ponta de lança, mas a impressão produzida é de que se tratam apenas de sobras requentadas, coisas que em sua imensa maioria o leitor contumaz de Roth já conhece.

Pouco proveito
Pierpont escreve a primeira biografia de Roth provavelmente querendo ser ponta de lança, mas a impressão produzida é de que se tratam apenas de sobras requentadas, coisas que em sua imensa maioria o leitor contumaz de Roth já conhece. Na introdução, a autora afirma que apesar da longa amizade com o escritor nenhuma versão da biografia passou por qualquer aprovação prévia: o aviso, no entanto, soa como bravata, uma vez que o texto inteiro é uma longa ovação à carreira e mesmo à vida de Roth, com a audácia apenas de falar que em uma obra de trinta livros alguns não são tão bons assim. Muito mais proveitoso teria sido o acesso ao autor por meio dos amigos, conhecidos e colegas; ou até mesmo a mera transcrição das longas entrevistas em vez do texto de Pierpont, pois se é para trabalharmos com uma única fonte, já há tempos conhecida, que ela fosse fidedigna ao máximo; restaria ao menos um pouco do fetiche da Palavra do Grande Autor.

Não se trata de um fracasso completo, no entanto. É interessante a recuperação da síntese de Saul Bellow de que literatura, a despeito de demandas incessantes de diversos grupos políticos (estando eles do lado certo ou não da luta), não deve se prestar ao serviço de relações públicas, de produzir uma imagem que agrade a qualquer projeto social homogêneo (nem mesmo o da diversidade); colocar o desagrado da comunidade judaica diante do Adeus, Columbus ao lado do desagrado do movimento negro diante de O homem invisível, de Ralph Ellison, ilustra bem a questão. Projetos sociais, até mesmo os de intenção e atuação louváveis, não têm interesse em pancadas na cabeça.

É, efetivamente, essa a polêmica atual (e já velha) da obra de Roth no que diz respeito ao feminismo, também discutida com saldo positivo pela biógrafa. No afã de encontrar vilões de grande renome no intuito de valorizar a própria iniciativa, certo feminismo mais raso se apressou na leitura de Roth ao reclamar que suas personagens femininas são quase todas histéricas e com defeitos de caráter e formação gravíssimos. É um grande exemplo de como é possível errar por meio de um acerto parcial. Deixa de olhar que os personagens masculinos também são histéricos e profundamente falhos: um mesmo esforço de caracterização o coloca como grande romancista ou como misógino, a depender da genitália do personagem, mesmo quando narra acontecimentos de sua própria vida, apresentados como tal.

Outra percepção interessante da biógrafa, essa com pouquíssimo desenvolvimento, é a comparação que faz com John Updike, dizendo que esse trabalha principalmente por meio do aparato visual (como seu mestre, Nabokov), esmiuçada em descrições de detalhismo incrível, enquanto Roth tem uma sensibilidade primeiramente auditiva, com seus romances de várias vozes. Poderia ter sido um eixo de análise uno para as resenhas de todos os romances; acaba servindo apenas de fecho agradável para seu texto, um Roth velhinho saindo todo feliz de um concerto em Nova York.

Ao final, a utilidade máxima que a biografia pode vir a ter é para alguém que anseia por pavonear conhecimento extenso de Philip Roth em círculos literários sem o esforço de mergulhar em sua obra, mesmo que esta tenha sido escrita em uma das expressões literárias mais fluentes e compulsivamente legíveis de nosso tempo. Infelizmente, nas horas que se lê o livro de Pierpont é possível ler ou reler O teatro de Sabbath, ou O avesso da vida, ou mesmo duas vezes o Homem comum (injustamente criticado por Pierpont), e a recomendação, enfática, acaba sendo por qualquer dessas alternativas.

Roth libertado – O escritor e seus livros
Claudia Roth Pierpont
Trad.: Carlos Afonso Malferrari
Companhia das Letras
480 págs.
Claudia Roth Pierpont
É jornalista da revista The New Yorker, na qual escreve sobre cultura há mais de vinte anos. Recebeu os prêmios Whiting Writers’ Award e da Guggenheim Fellowship, entre outros. É ph.D. em história da arte pela Universidade de Nova York.
Breno Kümmel

É escritor.

Rascunho