Discurso antibeat

Resenha do livro "Só por hoje", de Julio Ludemir
Julio Ludemir, autor de “Só por hoje”
01/06/2013

Talvez estejamos num tempo de revisões. Depois de todo o tumulto da literatura da violência, em que as vozes da periferia violentaram até a língua portuguesa e, claro, a estética, a serenidade passa a ditar normas. Muitos autores, mesmo ainda elegendo a urbanidade massificada e opressiva como ponto de partida para suas reflexões, já se permitem alguns ensaios de lirismo. E até perseguem uma linguagem mais apurada e requintada.

Em seu novo romance, Só por hoje, Julio Ludemir se filia aos novos tempos, mas mantém seu ofício de romancear o universo marginal carioca com uma tônica de crítica à íntima convivência entre bandidos e a elite da Zona Sul. Um chavão, não resta dúvida. Porém, no caso de Ludemir há o aprofundamento dessa crítica, o que, de certa forma, contradiz todo o glamour com que vários intelectuais, a partir de Carlinhos Oliveira e seu Terror e êxtase, romance publicado em 1978, vestiram a marginália carioca.

Legião perdida
O enredo conta de Tony, um ex-editor de sucesso que perdeu tudo, até os dentes, para a compulsão por cocaína. Está abstêmio há quinze anos e se sustenta traduzindo romances açucarados enquanto lê Gabriel García Márquez com encanto e paixão. Este frágil e medíocre universo se fixa em uma Copacabana decadente, tomada pelo tráfico e pela prostituição.

Ludemir botou seu protagonista no fundo do poço e o mantém a um centímetro deste fundo como um sobrevivente de anos de esbanjamento e até requinte e sofisticação. Como se o inferno ainda não fosse ali, abre um ralo — a paixão por Laís — por onde Tony pode escoar.

A partir desta trama Ludemir constrói seu discurso antibeatnik. Se o sonho daquela geração foi marcado pela apologia às drogas, aqui a seta aponta para todos os horrores que ela promove. Ninguém é vencedor, nem mesmo Tavinho, o milionário editor que preserva seu status. De resto, é uma legião de desdentados, esfarrapados e oportunistas. Não sobrevive sequer aquele discurso ético e pacifista, de liberdade plena, que seduziu Jack Kerouac e seus amigos.

A legião de Ludemir traz ainda uma feição bem conhecida, estereotipada e chapada, rasa mesmo. Tony é o menino de origem podre que subiu na vida. Tavinho, o que já nasceu com tudo mas que era inseguro para tocar os negócios da família. Sua mãe, Helena Junqueira, a bondosa e compreensiva senhora da sociedade. Duda, um oportunista capaz de trair a todos desde que lhe garantam a cocaína da sobrevivência. Cid, outro oportunista, o qual se vale dos centros de reabilitação para propósitos escusos. Ângela, a médica de sucesso que Tony desvia para o inferno das drogas e do sexo grupal. Thaís, a mulher fatal e drogada. E até um delegado truculento com passagem pela repressão militar dá os ares de sua graça na trama.

Catequese anticlímax
Há em todo o livro, de fato, um discurso doutrinador. Ludemir se esmera em falar das origens do Narcóticos Anônimos, dos processos terapêuticos, do ambiente mórbido das clínicas, da biografia de alguns heróis da recuperação de viciados, ou adictos, como ele prefere chamar. E isso favorece o anticlímax. Tudo bem, uma obra de ficção pode ter sua dose de proselitismo. Muitos autores já produziram bons livros a partir daí, mas quando o fizeram colocaram a doutrina a serviço da literatura e não o contrário.

No caso específico de Só por hoje, a catequese em alguns momentos chega a intervir no enredo de suspense, o grande mérito do romance. Isso mesmo, muitas cenas levam o leitor a se imaginar diante de um noir clássico, onde a violência era a mais perfeita tradução do instinto primário do homem, onde o herói sempre resguardava o contraponto da ética e da virtude. Quando Ludemir atinge este ápice, o que é muito freqüente no desenvolvimento da trama, o romance ganha fôlego e segura de fato o leitor — mas logo vem a doutrina e cai o ritmo de tudo.

Aliás, o ritmo da narrativa é outro grande feito. O enredo pede um caminho rápido, urgente, pois nenhum dos personagens tem mais tempo para saciar todos os seus desejos. E Ludemir os atende com precisão e segurança. Este caminhar frenético, enfeixado em capítulos curtos, oferece uma leitura agradável e divertida.

Resta então a linguagem, que retrata bem a dicotomia entre as classes sociais envolvidas no drama de Laís e Tony. Ela, a linguagem, empobrece na mesma proporção que perdem nobreza os personagens. É um jogo que não fica muito claro, mas que está presente aqui. E também surge de maneira bem dosada, não tanto sofisticada, nem tanto descaracterizada pelas gírias.

Enfim, Só por hoje é um bom livro de suspense que se perde nos desvãos do proselitismo. Da leitura fica a clara impressão de que em cada nova página o autor está a nos dizer que a droga é o mal e a resistência é o bem. O problema é que este tipo de maniqueísmo há muito deixou de encantar leitores adultos.

Só por hoje
Julio Ludemir
Rocco
160 págs.
Julio Ludemir
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1960, mas foi criado em Olinda (PE). Tem oito livros publicados, como o livro-reportagem Rim por rim, sobre o tráfico de órgãos humanos no Brasil, e No coração do comando, em que explora o sistema carcerário. É um dos criadores da Batalha do Passinho e da Flupp.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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