Discos independentes são faísca no fim do túnel

Terra à vista! Em meio ao oceano de pieguice que se transformou a música brasileira surgem vozes dissonantes de pessoas dispostas a dar um chute na canela de sertanejos e pagodeiros
01/05/2000

Terra à vista! Em meio ao oceano de pieguice que se transformou a música brasileira surgem vozes dissonantes de pessoas dispostas a dar um chute na canela de sertanejos e pagodeiros, estes seres quase acéfalos que contam com o “esquemão” das grandes gravadoras para empurrar, goela abaixo, o que há de pior no universo musical deste país.

O público de rádio e dos programas televisivos de auditório parece que se acostumou a ouvir besteiras do tipo “venha ser meu pão de mel, meu bem querer” ou “é o que se chama amor…tomou conta do meu ser…”. Esses chicletes de ouvido que torturam os que resistem aos modismos.

Contra esse mal só há uma opção: desligar o rádio e a tevê e ir atrás de CDs que rodam no circuito alternativo. Eles são feitos com poucos recursos e, em alguns casos, com muita criatividade de músicos dignos que recusam curvar seus princípios e que apostam numa música mais cerebral, mesmo quando esta trata de emoções.

É o caso da banda Fábula Tirana, que acaba de lançar um CD de demonstração chamado Literatura Passional Volume Zero. Pretensioso para um CD demo? Não exatamente. As músicas têm influência explicita do melhor que o rock inglês nos legou.

Mas o que mais chama a atenção são as letras inspiradas que revitalizam um tema que, em princípio, é universalmente brega: o amor.

Para o líder e principal compositor da banda, Ju Negrão, o disco é um pequeno inventário afetivo que carrega nas tintas para servir aos ideais poéticos.

A primeira faixa do CD já demonstra isso: 24 de Julho descreve em tom de lamento as pedras que inexplicavelmente surgem no caminho, quando homem e mulher procuram-se mutuamente. De repente, não mais que de repente, o que era certo se torna inviável e como diz a letra de Negrão: “erro pelo mundo só/mesmo com gente ao meu redor”. Chega a lembrar Vinícius no Soneto da Separação: “Fez-se do amigo próximo o distante/ Fez-se da vida uma aventura errante.”

Degraus é a segunda música do CD. A letra curta narra o encontro do compositor com uma pessoa que perde algo muito precioso. É uma pessoa diante do vazio da vida e em busca de alento. Aqui a poesia de Negrão mostra vigor para criar imagens tocantes com o mínimo de recursos: “degraus/o topo da escadaria/um corpo se abre/dois braços confortam/olhos fechados/poesia em movimento” .

Procura-se, a terceira faixa, é assinada por Maurício Neves. O tom de súplica pede um caminho para uma vida menos insignificante, com sentido, norte. A última música é Rancor.

Apesar da obviedade do desgastado verso “eu te amo mais que a vida”, a letra traz um paralelismo interessante baseado no rompimento de um namoro: “como o goleiro morre a cada gol que leva/eu vivo menos quando ouço que você me descartou.” Outro destaque da faixa é a interpretação “esnobe” do vocalista que encerra com o verso “você queria uma canção, mas não merecia esta canção…mas não merecia mesmo!” Não merecia, mas ganhou… Será dicotomia? Não. É arte que, como tal, nasce do conflito. Esta é única faixa em que as guitarras não dão suporte à poesia.

O técnico de gravação Alessandro Laroca criou um arranjo de cordas primoroso. Aliás, o resultado de todo o CD é bom, ainda mais considerando que ele foi gravado num único dia em apenas 10 horas e sem a superprodução de uma “gigante-records” da vida.

É um porto seguro, um trabalho que vale a pena ser prestigiado pela coragem da empreitada.

Serviço: o CD “Literatura Passional Volume Zero” pode ser encomendado pelos fones 0**41-223-1479/9991-7466 ou por e-mail: [email protected]

Jeferson de Souza
Rascunho