Dinheiro no cofre, macacos na jaula

A crítica e o pensamento políticos, durante séculos, sempre pareceram estar restritos a estratos melhor abonados da sociedade
John Reed
01/08/2001

A crítica e o pensamento políticos, durante séculos, sempre pareceram estar restritos a estratos melhor abonados da sociedade. Sobre governos e sistemas econômicos, muito se disse e discutiu em salões de baile e de academia, muito se debateu em congressos, assembléias e concílios. E quase tudo foi e ainda é decidido entre as quatro paredes de meia dúzia de clubes privados. Suspeitos como uma casa de tolerância onde se vendesse o corpo dos outros. De gente alheia à própria prostituição. A informação, hoje, permanece, com justeza, sendo considerada um privilégio de quem a possui ou obtém. Mas precisa ainda ser vista e desmascarada como arma nas mãos de quem a distorce ou omite.

Tudo isso é trivial. De uma obviedade cretina. Tecer comentários belicosos a respeito do controle da informação por quem retém em seus cofres toda a riqueza do mundo é simplesmente perda de tempo e munição. Carregar bacamartes com pólvora molhada. Mas nunca parece ser de todo inútil lembrar daqueles que, mesmo possuindo conhecimento e técnica suficientes para as tarefas da documentação histórica, da reportagem e da crônica populares, excluem-se, por vaidade ou covardia, da responsabilidade de divulgar o que “sabem”. A própria palavra “popular” ainda tem ares de tachação pejorativa dentro dos meios de comunicação, entre teóricos e até artistas do pensamento, como se vivêssemos eternamente sob o sol e os favores de alguma aristocracia oitocentista ou monarquia divina. Como se a constatação mais gratulatória da nossa inteligência se desse no momento sensualíssimo em que o rei finalmente nos aceita na corte e nos estende a mão mole para um beijo.

É bom, de vez em quando, sentir vergonha. Pois a figura do rei, aqui, ainda representa as classes altas e endinheiradas (e “inteligentes”) da sociedade brasileira. E os pensadores da imprensa são, muitas vezes, os seus bobos. Dando cambalhotas atrás do reconhecimento de intelectuais e universitários. Serviçais que não hesitariam em aceitar um convite para sentar-se à mesma mesa dos patrões a quem pregam, pelas costas, ódio incondicional. O povo é somente matéria-prima para um artigo, um ensaio, uma coluna. Um instrumento de malabarismo político e profissional.

Por que ninguém parece preencher a lacuna que separa a informação — opinativa e crítica — do povo? Por que ninguém mais arrisca diminuir a distância entre as massas e o repórter observador, o cientista político, o artista “sério”? Talvez por falta de atitude. Ou virilidade. Uma coisa é certa: nem a erudição fanática,, nem esse jornalismo asséptico que hoje se estabeleceu no mundo feito um decreto imperial, devoto de imparcialidades e cheio de dedos, servem adequadamente ao povo. Há que se reformar a casa.

Nos Estados Unidos pré-Guerra Fria, um modelo bastante interessante de comunicação popular parecia surgir. O país ainda era um cenário de faroeste. Tido na Europa como uma terra de selvagens e caipiras. A necessidade dos governos norte-americanos da época de vender-se como nação democrática e moderna, mercado novo de um milhão de oportunidades e investimentos, fez com que se abrissem portas perigosas. H. L. Mencken, jornalista iconoclasta da primeira metade do século passado, já ironizava: “A democracia é a arte de administrar o circo a partir da jaula dos macacos”. Os governantes americanos, presos a essa estratégia política, louvavam a liberdade de imprensa por eles graciosamente concedida, e, por isso, em detrimento deles próprios, enfrentaram pensadores populares poderosos. O poder desses homens de verbo e talento vinha, exata e exclusivamente, da estupenda capacidade de comunicação entre eles e o seu povo. Tal contato inédito (talvez apenas Voltaire tenha, anteriormente, se aproximado desse ideal) deu-se por meio de dois veículos: o jornalismo e a música populares.

Woodie Guthrie é um exemplo. Poeta habilidoso, compositor e cantor folk de gênio indiscutível, era a voz, a garganta e o coração dos sindicatos norte-americanos nos anos 30 e 40. O primeiro “músico alternativo” da história. Compunha hinos proletários com maestria e eficácia. Conhecedor da sua gente e de si mesmo, sabia o que agradava os homens: mulheres como Ingrid Bergman e jogadores de beisebol como Joe Di Maggio. Sabia também o que temiam: Deus. Guthrie era, ele próprio, pobre e religioso — mas, nem por isso, pouco boêmio. Muito diferente, portanto, das hordas clássicas de marxistas que, antes mesmo de convencer o povo da importância urgente da organização sindical, já lhes atacavam, irresponsavelmente, a religiosidade. No violão de Guthrie, fazedor de bases lindas para canções que lançavam Jesus Cristo como candidato a Presidência, estava gravada uma frase capaz de elevar o ânimo de milhares de operários em avançada greve de fome: “Esta máquina mata fascistas”.

No jornalismo, destacou-se, é claro, o próprio Mencken, homem de amargura e senso de humor elevadíssimos. Era contra tudo: o capitalismo e o socialismo, o liberalismo econômico e o marxismo, a democracia e a ditadura, a igreja e o zoológico. O exagero e a piada eram os deuses a quem rendia culto. Era, inclusive, contra o telefone e o automóvel. O povo lia seus artigos em voz alta, na praça e na fábrica, a multidão ria e comentava suas idéias, e, mesmo escandalizada ou ofendida pelo seu niilismo absurdo, aplaudia o homem que tão bem sabia lhe contar histórias sobre os altos círculos do poder e os mais baixos instintos e sentimentos humanos. Mencken conseguia prender a atenção dos leitores mesmo quando escrevia sobre Beethoven ou Wagner. Mas Mencken é considerado o maior homem de negação das primeiras décadas do século 20. Foi eleito o grande nome da redação jornalística da época, sujeito atento às mudanças por que passavam a civilização e a urbanidade que o cercavam.

Houve um outro, porém, de importância e excelência igualmente reconhecidas. Só que diametralmente oposto a Mencken. John Reed pode ser compreendido como a personificação da fé na humanidade, a esperança em forma de repórter. Enquanto Mencken fez sua fama de articulista emparedando-se numa redação, Reed eternizou-se como agente externo e lendário, nômade e aventureiro, correspondente internacional, observador quase nunca passivo de alguns dos momentos mais cruciais da história contemporânea. Ele esteve presente na Revolução Mexicana, cavalgou com as tropas de Pancho Villa, acompanhou, enojado e de vários fronts, a Primeira Guerra Mundial, e participou ativamente da Revolução Russa. Suas reportagens viraram clássicos do jornalismo. Publicou México Rebelde, A Guerra na Europa Oriental e Dez Dias Que Abalaram o Mundo, este último glorificado como o melhor livro jornalístico de todos os tempos. Além disso, documentou todo o surgimento do sindicalismo norte-americano, cobriu as primeiras greves no país, as prisões coletivas e os massacres em massa de trabalhadores. De maneira nada imparcial e, mesmo assim, extremamente ética e apaixonada. Basta lembrar que Reed foi um dos primeiros americanos filiados à Internacional Comunista e que chegou a declarar que a IWW (Industrial Workers of the World) fora o seu “primeiro amor entre as organizações operárias”.

Oito textos menos conhecidos de Reed, extraídos de seus livros e dos jornais e revistas em que trabalhava (The Masses, Liberator, Seven Arts e Metropolitan Magazine), acabam de ser reunidos em uma coletânea bastante diversificada, mas, ao mesmo tempo, plena de coerência e uniformidade. Eu Vi Um Novo Mundo Nascer (Boitempo, 151 págs.), além de documento e testemunho magistrais de uma época, postos à disposição de toda e qualquer pessoa interessada em desenvolver o espírito ou o intelecto, é leitura mais que obrigatória para jornalistas modernos que, desde os anos festivos da faculdade, não ouvem falar do termo “função social”. Ou simplesmente, fazem-se de surdos.

Abre-se o livro com um texto autobiográfico. Quase Trinta, escrito quando o repórter tinha 29 anos, resume, em pouco menos de vinte páginas, toda a vida de Reed. A infância tranqüila no Oregon, a adolescência complicada na escola, o desenvolvimento de sua inteligência e o aprimoramento de sua popularidade na Universidade de Harvard, onde se formou como jornalista. A descrição de suas atividades e relacionamentos acadêmicos é de causar inveja a qualquer universitário brasileiro minimamente esperto. Quando conta sobre suas viagens, Reed descreve os medos e terrores que viveu como correspondente de guerra e os pânicos que o tomavam ao ver-se vulnerável, exposto a mutilações e à morte; lembra as fugas desabaladas que empreendeu em tantos “últimos minutos”. Explica, também, como, por meio da observação simples da miséria, tornou-se socialista e defensor possesso da luta de classes. E termina, singelamente, fazendo uma declaração de amor a sua mulher, Louise Bryant: diz que é por ela que vive e, por causa dela, não teme mais nada. Observação primorosa, muito bem colocada no início do livro. Mostra que Reed possuía, sim, uma vida íntima, pessoal. Ele não era um indivíduo abnegado que se entregava em sacrifício cego à coletividade.

Os dois relatos seguintes são o que há de mais interessante em Eu Vi Um Novo… Tratam de duas greves ocorridas nos Estados Unidos na segunda década do século. Guerra em Paterson é um retrato da greve dos operários da indústria têxtil em New Jersey. Reed a conta por meio de conversas que teve com os grevistas na cadeia, onde também esteve preso, acusado de um pretenso desacato aos policiais que reprimiam as manifestações trabalhistas. Um golpe irônico de sorte. A parcialidade às vezes inocente do repórter chega a incomodar um pouco. Reed parece recriar, nos operários “bons moços”, o mito do bom selvagem de José de Alencar, tamanha é a admiração que sente pelo movimento sindical. Mas deixa claro que, se está fazendo propaganda, a faz contra a vontade e dentro das regras da arte.

Já em A Guerra do Colorado, o jornalista se supera. A narrativa beira o terror. Descreve os dias de agonia crescente por que passaram as famílias dos trabalhadores das minas de carvão do milionário John Rockefeller, em Ludlow, durante uma paralisação da classe mineradora. Cerca de 1.200 pessoas foram aterrorizadas por milícias de mercenários, pistoleiros, bandoleiros, matadores e soldados armados com rifles e metralhadoras. Uma onda de saques, espancamentos, tiroteios e torturas culminou num massacre absurdo, quase inacreditável. A Guarda Nacional chegou a matar, além dos operários, suas mulheres e crianças. Carbonizadas, encurraladas nas tocas que cavaram, no chão das barracas, para protegerem-se da chuvarada de balas. Reed, ainda parcialmente, omite o número de mortos em Ludlow, que, sabe-se, foi gigantesco. Assim cria o efeito fantástico: nem a Cruz Vermelha teria conseguido contabilizar as baixas. No final, inteligentemente, publica um telegrama de Rockefeller ao diretor das minas, parabenizando-o pela vitória gloriosa sobre os grevistas.

Nos três artigos sobre a Primeira Guerra Mundial — A Guerra dos Comerciantes, A Guerra na Europa Oriental e Essa Guerra Impopular —, critica duramente os governos europeus e americano por lançarem populações inteiras a um conflito prosaico e insosso, causado por questões puramente comerciais. As entrevistas que fez com soldados de quatro exércitos mostravam que nenhum deles sabia pelo que estava lutando. E muito menos com quem. Reed, comparando a guerra européia com a revolução villista que acompanhou no México, pinta a convulsão no Velho Mundo com tintas ainda mais grosseiras e menos autênticas.

Em A IWW Perante os Tribunais, Reed promove uma festa de ironia. Cobrindo o julgamento de 101 líderes sindicais — sem chance alguma de absolvição —, o autor ridiculariza impiedosamente a Justiça e a Igreja americanas. A transcrição do interrogatório dos réus pelo promotor ignorante serviria de argumento para uma tragicomédia cinematográfica: “Você pode conceber um sistema social no qual os trabalhadores sejam donos das indústrias e as administrem por si mesmos? Você acredita, ou não, que os redatores da constituição norte-americana agiram sob inspiração divina?” O ano era 1918. (Mencken também viveu, nos tribunais, um drama semelhante, em que a truculência intolerante dos ianques parecia não ter limites: o julgamento de John Thomas Scopes, professor de Ciências que ousara comentar com os alunos a Teoria da Evolução de Darwin numa escola do Tennessee, em 1925. Scopes fora preso — legalmente — por blasfêmia.)

O volume termina com uma trégua. Um pequeno “conto”, O Hotel de Doña Luisa. Reed o escreveu, com intenções humildemente literárias, durante suas viagens ao México. Não há, aqui, qualquer resquício de engajamento panfletário, mesmo porque, à arte, reserva-se sempre o direito de ser apolítica.

John Reed prova que o jornalismo pode ser parcial e opinativo sem deixar, nunca, de ser ético, informativo, objetivo e, principalmente, bem escrito. Com esmero estético e respeito ao direito básico do leitor de ter acesso a um material jornalístico de excelente qualidade. Reed também é um exemplo de profissional que não se acomoda nem se conforma. Ótima leitura para os dias de hoje, em que a contestação parece ter caído em desuso. É preciso, às vezes, sentir vergonha. Caso contrário, corre- se o risco de, sem perceber, passar a vida dentro de uma redação, apenas copiando press-releases. É claro que, se John Reed tivesse feito isso, não teria morrido precocemente de tifo, em Moscou, aos 33 anos, e nem estaria enterrado no Kremlin, como herói da revolução.

Teria morrido de inanição. Dez ou quinze anos depois.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

Rascunho