Dilema marciano

O romance "Estrela vermelha", do russo Aleksandr Bogdánov, é um alerta para que cuidemos da Terra — e do ser humano — antes que seja tarde
Aleksandr Bogdánov, autor de “Estrela vermelha”
01/08/2021

É equivocado qualificar Estrela vermelha como uma utopia, embora este seja seu subtítulo. O romance de ficção científica, publicado em 1908, descreve, sim, uma sociedade comunista igualitária, justa, próspera tanto econômica quanto tecnologicamente e comprometida em dar aos cidadãos que habitam Marte uma existência plena; mas aqui, nesse momento em que outras fantasias chegariam ao fim para marcar o contraste com nosso mundo vil, o psiquiatra, político e filósofo russo Aleksandr Bogdánov injeta tão agudos dilemas éticos que esse planeta de mentira se torna a cada página mais possível e mais próximo aos problemas com que tem de se defrontar um sistema hegemônico na Terra, a despeito de seus pressupostos teóricos.

No entanto, os leitores só serão apresentados às urgentes questões que afligem os marcianos quando a obra entrar no último terço e se encaminhar para um sucinto final. Isso nos confirma que pintar as vantagens de um futuro comunista, mais que costurar as tramas de um história cheia de reviravoltas, é a preocupação fundamental de Bogdánov, que escrevia enquanto nas ruas se desenrolavam as revoltas antecipadoras da revolução de 1917 e os círculos ilustrados divergiam sobre o melhor projeto para a vida pós-capitalista.

Construção social
Para argumentar que uma outra construção social é possível, ele teve de facilitar no que pôde a história pregressa da civilização florescida em Marte. Tudo que na Terra descambou na pior alternativa percorreu no Planeta Vermelho, se não a melhor trajetória, pelo menos a que levou, ao cabo, a uma vida perfeitamente ajustada em comunidade.

“Houve, é claro, guerras entre as tribos e os povos, houve também a luta de classes; mas as guerras desempenharam um papel relativamente pequeno na vida histórica e cessaram por completo relativamente cedo; já a luta de classes manifestou-se menos e mais raramente na forma dos embates da força bruta”, impressiona-se Leonid, o matemático terráqueo que é convidado a “servir de elo vivo” entre as duas culturas.

Ele completa, em meio às pesquisas livrescas que conduziu para entender o passado deles: “A escravidão era absolutamente desconhecida aos marcianos; seu feudalismo foi muito pouco militarizado; e seu capitalismo se libertou muito cedo da fragmentação em Estados-nações, não tendo criado nada semelhante a nossos exércitos modernos”.

A ausência de grandes montanhas e de vastos oceanos que descontinuassem o território em continentes diversos ajudou as línguas a se aproximarem e os dialetos a cultivarem apenas particularidades compreensíveis por todos. “O desenvolvimento da literatura também pôs um fim a eles”, explica Menny, o cientista que propôs a viagem interplanetária ao protagonista e serviu de cicerone em muitas ocasiões.

Mesmo a intensa concentração de terras sob o domínio de capitalistas, cujo dinheiro financiou em parte os grandes canais de irrigação após o ressecamento brutal do solo, foi fraturada pelo Estado com pesados impostos. Não sem uma renhida luta, é verdade, vieram a nacionalização e a partilha entre os trabalhadores num contexto em que as obras monumentais fizeram florescer a indústria e dizimaram o desemprego. Daí resultaram avanços sociais coletivos no trabalho, na criação dos filhos, nas artes.

Fórmula produtiva
A fábrica deixou de ser espaço de opressão, abandonou o caráter essencialmente alienante e se transformou em ambiente privilegiado para o exercício da cidadania, porque agora os trabalhadores — sem que sejam coagidos ao serviço ou obrigados a qualquer ofício, uma vez que “o trabalho é uma necessidade natural do ser socialista desenvolvido” — podem escolher, em jornadas diárias de quatro, cinco ou seis horas, onde devotar sua dedicação produtiva ao sabor das necessidades populares imediatas. Ajudam nessa opção painéis estatísticos dispostos nos galpões; eles contabilizam as horas excedentes ou deficitárias empregadas na confecção dos diferentes bens, a fim de que “cada um possa ver onde falta força de trabalho e em que justa medida. Então, quando uma pessoa tiver aptidão exata ou aproximadamente igual para duas atividades, escolherá aquela cujo déficit é maior”, explica Menny a um Leonid mesmerizado. Em 60 minutos, “alguns milhares de pessoas já tiveram tempo de expressar sua vontade de se transferir de um trabalho para outro”.

A confiança no conjunto da sociedade perpassa também as instituições educacionais, que, misturando várias idades, funcionam em regime de internato e têm o objetivo de socializar destruindo as pulsões individualistas ou agressivas que Bogdánov enxerga como intrínsecas. “A autodeterminação das crianças pequenas e das maiores, em muitos casos, possui esse caráter vagamente individualista. A aproximação da puberdade, num primeiro momento, ainda reforça esse matiz. Apenas na juventude o meio social do presente vence por completo os resquícios do passado”, responde Nella, instrutora da Casa das Crianças.

Mais à frente, essa mesma personagem descarrega uma vara na mão do menino que agrediu um anfíbio, para lhe ensinar uma lição curiosamente pacifista. “E você bateu no sapo com mais força ainda. Eu só bati na sua mão, mas você quebrou a pata dele.” Cria-se, no convívio e na relação entre as faixas etárias, uma geração que vê na cultura e no conhecimento fontes de entretenimento e diversão. Não é à toa que todos se apinhem no auditório para assistir a palestras de renomados cientistas.

Espírito coletivo
O espírito que move essa coletividade fica terrivelmente claro no passeio que o protagonista faz ao museu; é nas obras de arte, nas pinturas e esculturas que permitem extravasar o inconsciente de artistas e de sua época, onde Leonid expõe o esqueleto que sustenta o corpo social. Tentando resumir o que vê nas paredes, ele afirma:

Na época socialista, o caráter principal muda de novo, é um movimento harmonioso, uma manifestação calma e confiante da força, uma ação alheia à dor do esforço, a aspiração livre da agitação, uma atividade viva repleta da consciência de sua união harmoniosa e de sua racionalidade inabalável.

Essa razão harmônica, que opera nas muitas áreas da vida, inclusive e talvez principalmente na medicina, como ele também mostra, não joga o sentimental às sombras, mas o reelabora sob seu prisma. A arte, para Leonid, expressa “o próprio amor: claro, iluminado e que tudo vence”.

Por isso relações amorosas não estão deslocadas nessa paisagem tão matemática; e a conexão entre o terráqueo e uma extraterrestre pode surgir do inesperado. Esse par romântico repentino, ainda que encha de um sentimentalismo barato algumas páginas do livro, é válido para preparar o terreno ao que virá. Tal ponte entre os dois planetas, por pouco tempo alicerçada em esperança, rapidamente se torna um estorvo a ambos os lados. É que os marcianos, assim como nós, também são capazes de maquinar planos atrozes.

Nesse imponderável, ou nas contradições inerentes à própria participação no fluxo da vida, reside o motor da história, para a qual o escritor, com muita sabedoria, não vislumbra um estágio imutável. Isso porque a humanidade não se basta. E, mesmo populações que concretizaram o aparentemente impossível em termos sociais, quando se confrontam com a grandiosidade da natureza e sua fronteira, põem-se diante de uma finitude que não conseguirão cruzar.

O romance é feito um conselho do passado que nos chega, como a mensagem na garrafa, em oportuníssimo tempo, para nos avisar que nossa responsabilidade com o bem-estar do ser humano não deve se dissociar de uma atenção com a própria Terra e seus recursos — em verdade, com o universo. Caso contrário, teremos de vasculhar o cosmos em busca de um lugar que nos abrigue, sem garantias de sucesso.

Estrela vermelha
Aleksandr Bogdánov
Trad.: Paula Vaz de Almeida e Ekaterina Vólkova Américo
Boitempo
184 págs.
Aleksandr Bogdánov
Nasceu em 1873, em Sokólka. Exerceu a medicina, escreveu tratados célebres em várias áreas, teorizou sobre filosofia e economia. Bolchevique de primeira hora, foi expulso por Lênin após divergências em 1909. Tornou-se um dos pioneiros na Rússia em experimentos com transfusão de sangue. Morreu em 1928.
Alan Santiago

É revisor de textos da UFPR. Já foi repórter nos jornais Folha de S. PauloAgora São Paulo e O Povo. Publicou o livro de contos A lua de Ur num prato de terra (2009, 7Letras)

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