Ao receber um livro para comentar, fico sempre preocupado. O motivo é que meu conhecimento sobre literatura possa estar aquém do que o livro oferece. Mas a seguir, refletindo com mais profundidade, chego à conclusão de que isso pode não ser totalmente mau. Inúmeras vezes, quem trabalha com a crítica está sujeito ao equívoco. E antes ele do que o elogio fácil. Nas marés em que nossos barcos se aventuram, há muitos arrecifes, na maioria das vezes não somos capazes de detectá-los; na pós-modernidade, sobretudo, os faróis (quando existem) são enganosos. Como consequência, o naufrágio.
Do mesmo modo, um autor, ao iniciar um romance, jamais tem certeza se chegará ao seu fim. Por mais que seja capaz de elaborar complexos esquemas, traçar perfis de personagens ou cenários para os futuros eventos a ser retratados. Podem faltar-lhe as palavras, e sem elas não há narrativa que evolua. Por outro lado, há autores e autoras que são capazes de deixar fluir suas histórias. Elas estão intimamente ligadas à própria existência.
Uma exposição, de Ieda Magri, é uma surpresa. O tema e a investida não são novos, mas o romance vale a pena. Sebald foi mestre em escrever livros de memórias, recuperando personagens nem tanto ilustres, incluindo todos os detalhes, como fotos de lugares, de coisas e de gente. Karl Ove conta sua vida sobre milhares de páginas. Seu artifício não são as fotos, mas a metalinguagem e a ordem dos acontecimentos.
Qualquer leitor experimentado, ao ver todos aqueles volumes, pode pensar: “Isso deve ser uma extensa bobagem”. O autor a falar de sua vida, incluindo infância, adolescência, seus trajetos numa Noruega e Suécia geladas, com pequenas histórias de colégio, de sua família, e de suas andanças. No entanto, quando começamos a leitura, já não queremos largar os livros. Aquele personagem poderia ser um de nós, em busca do poder que a escrita pode proporcionar. Gostaríamos de ter vivido e feito o mesmo, ter contado nossa mediocridade diária transformando-a em literatura. Ele consegue, tem leitores no mundo inteiro. Após iniciada a leitura de qualquer um de seus volumosos tomos, conscientizamo-nos de que a bobagem só existia no nosso julgamento precoce.
A literatura brasileira atual vai por esse caminho. Já há muito que os heróis desapareceram. Melhor dizer que esses heróis somos nós, os escritores, e devemos nos representar nas narrativas, não esquecendo o lado escuro de nossas almas, com todas as inseguranças e incertezas, que não nos abandonam. Importante, ao mesmo tempo, salientar o afeto que cada um de nós precisa receber e externar. Não devemos ocultar tal necessidade. Essas questões aparecem, com clareza, nesta nova narrativa da escritora catarinense.
A narradora-autora faz o percurso de volta à casa paterna. Vai a uma festa. Não é uma festa onde se vai comemorar a volta do filho (ou da filha) pródigo, arrependido e esbanjador, mas alguém que volta em busca de um passado irrecuperável, cuja busca lhe dará sentido; discuti-lo com o leitor será um meio de retornar enriquecida à quase terra estrangeira que escolheu para viver. Não é o encontro do tesouro que vai nos enriquecer, mas o ato de procurá-lo.
Trágico destino
Neste romance, todos os seres têm o mesmo trágico destino. Tanto os humanos quanto os animais. A tradição da família anfitriã é preparar o alimento para oferecer aos convidados, incluindo a escolha do boi a ser abatido. Faz parte do ritual também acompanhar todo o processo, porque esta é a ordem natural da vida. O boi, que não tem nome, é escolhido pela família, o de número 45. Tudo acontece como no tempo em que a narradora era criança e acompanhava com o irmão o trabalho do pai a abater o animal para a festa. Ao leitor não é poupada a investida. Além das palavras, acompanhamos também as fotos, desde o boi ainda vivo, até ele virando churrasquinho, passando por todo o processo de corte. De certa forma, pouco a pouco, morremos junto com o animal.
O importante é que há um mergulho no duplo “infância” e “idade madura”. Na primeira, voltam os mortos que já não estão na festa de agora. Eles sobrevivem, na literatura. O romance passa ter como foco não a narrativa de uma festa ou a descrição da submissão dos animais ao poder humano, mas o jogo de espelhos refletindo passado/presente e um possível futuro, onde nos poderíamos aclamar heróis.
No entanto, contado os desgastes, como a quantidade de mortos, como avós e tios, e todos os prejuízos, saímos com muitas fissuras. Neste inventário de lembranças e de tentativas de recuperação do passado, objetiva-se a aprendizagem para um presente transitável, plano, para um futuro em que um novo amor e o sentimento renovado nos permitam um mínimo de felicidade. Entretanto, quem é que nos garante? A literatura. Ela é capaz de nos proporcionar isso, assim como proporcionou a Proust a possibilidade de recuperar um passado que sem ela seria esquecido. Há o diálogo com a própria existência, com os leitores, que jamais sabemos ao certo quem são. E o último diálogo que, no fundo no fundo, é travado com nós mesmos. O escritor é o ser que procura sempre um diálogo impossível.
Viagens temporais
A narradora faz a viagem de ida, começa fazer a de volta, relembra outras viagens, outros amores, mas descobrimos que ela pode nunca ter partido de sua terra natal. Sua lembrança é forte demais. Ou, quem sabe, pode ter voltado em busca de um mundo que só é capaz de existir à medida que é representado.
No prólogo, há um aviso: “Conhecer uma pessoa, recebê-la na vida, é se conhecer de novo”. Talvez aqui esteja o segredo do livro. Este novo amor permite a literatura, isto é, o processo de se conhecer de novo, para o escritor, implica escrever. A viagem empreendida pela personagem acaba tendo duplo sentido. O primeiro é a própria viagem física, descrita no livro como um evento importante. A outra é a viagem por meio da literatura, essa odisseia difícil, que, além de compartilhada com uma audiência desconhecida, serve como processo de autoconhecimento, ou de autoaperfeiçoamento, isto é, de vida.
Ainda um momento pungente é o do abate do boi escolhido para a festa. Maritânia, a camponesa que trabalha com o marido no abate artesanal, diz para os outros bois que não foram escolhidos e ficam olhando o que vai para o sacrifício: “Vão embora, meus filhos”. Caio, o marido, completa: “Mais dia menos dia vai lhes acontecer o mesmo, se não aqui, assim, sem sofrimento, no abate, um atrás do outro. Assim é o destino”.
Para tempos veganos, Uma exposição pode parecer um escândalo ou uma provocação. A autora, no entanto, coloca como questão o aspecto trágico da existência, não defendendo quem quer que seja, apontando o destino, a estrada, que cada um de nós deve seguir. Não importa se para uma festa ou se para a morte, que sempre está por perto. Por isso, tentamos vencê-la recuperando o passado. Tentamos salvar a vida por meio da literatura.