Diáspora não é lar

Em carta para Nina Rizzi, Calila das Mercês reflete sobre diáspora, poesia e corpo como territórios de memória, desejo e resistência
As poetas Calila das Mercês e Nina Rizzi
14/09/2025

Nina,

A palavra movimento sempre me encantou, talvez por eu quase sempre receber o vento e não somente o veto que tem dentro dela. Escrevo um movimento para você com a cadência e uma fé sem explicação, de torcida que se diz organizada, com os sotaques das vozes das minhas casas, com o barulho das descargas das motos que não param de passar na rua que vivo agora, e ao mesmo tempo com a calmaria de capim santo que desdobra na efusão do chá que faço junto a imponência cheirosa das roupas lavadas, antes gastadas no carnaval.

Escrevo no barulho. Na madrugada vivona. Dentro do ônibus, do avião, no meu escritório itinerante, olhando para um tanto de constelações em ângulos diferentes. E em um tempo que não é sobre horário e eclipse em virgem ou qualquer outro ponto de chegada ou (part)ida. Presto muito a atenção nessa sua conversa com a sua mãe e, também com Beatriz Nascimento, sergipana, nordestina, que junto com tantas das nossas, nos proporciona pensamentos de coragem e entusiasmo, nos convoca a trançar pensamentos com a nossa comunidade e com tantos outros tempos, assumindo nossos corpos-documentos, em busca da liberdade a partir do gesto de agora. E esse gesto seu…

Me atento às tantas cores e aos tons escuros brilhantes da poesia, harmonia nas letras escolhidas sem hierarquias, na encruza, na querência de um poema-bomba, que chia (e pode explodir a qualquer momento, momento que também está dentro de movimento), mas também o que dança e salga a dor, o banzo e o dengo já agridoces.

Subjetividades são bem-vindas, alertam-nos, nos espaços que nos requerem para celebrar uma tal diversidade, e que nos convocam para dar a nossa letra sem mesmo esperar que este gesto ocorra diante da constante cor(r)ida. E adentrar em perspectivas da diáspora, camadas deste espaço (?) que nos confere e convoca não é somente um desafio, é uma teimosia. Como diria meu pessoal de casa, Nina, você tá procurando ousadia? E eu que como você respeito as palavras, as ditas, as sussurradas, as gestuais, as escritas, as que nos são ensinadas a guardá-las no okan e no orí em cosmovisões de quem nos respeita antes de tudo isso existir – entre reflexos e casas, penso junto contigo nestes começos que ultrapassam a nós mesmas e que de alguma maneira adentra conosco a jornada em que (ar)riscamos a nossa própria história – confesso que estive tão apaixonada quando te li, imersa ao amor de quem não teme a dança. Apaixonada por janelas cheias de cores e ar, mar e vegetação dos sonhos, palavras-canções que derretia como picolé em um dia quente no Ceará ou na Bahia. Corporeidade como forma real de experiência do mundo, quando tu diz “ó! a terapeuta e a crítica nunca entenderiam/ o ferro a terra a água o canavial o milharal os trapos/ a gente suada rindo comendo bebendo sarrando/ nunca entendem mesmo o verbo/ a estratégia que molda nossa pele”.

Na lã-rause, na zona rural, na calunga, no sangue, nas casas-grandes, na casa e na casinha, dentro das águas ou no meio do incêndio, na fazenda, nas ruas, no suor, na etiópia, na escola, na canção, no chão imundo, na rasteira que abraça, no gozo, na floresta, atrás da cortina, na memória. Sua poesia, Nina, movimenta, esquenta, venta, água, laaaaaaaaaaaaaaaaaaar.

Fiquei esse tempo pensando em escrever pra você esta carta pra que você pudesse publicar e não. Guardar pra você como uma protea, como a que recebi do amor. Uma flor que pudesse sobreviver para além da imersão das águas. Que aguentasse o risco de lidar com a escassez de líquidos e ainda assim ter beleza, apesar da brutalidade que dizem ter. Bruta flor. E eu só penso na força de algo que exista para além de uma beleza esperada, óbvia, pronta e que não tenha a ver com o que tem de história nossa. Enquanto lia suas poesias via o tanto de vida que existe nas estradas do Nordeste por onde passei nos últimos tempos. Dizer sobre “gozar fora da cama e rir para além de memes”, abraça tanto, nada pode ser mais real que está aqui conectada com este movimento de agora, do instante no meio do vento por entre o sal e as palavras, marcadas/ditas/segredadas/detestadas/brincadas/enviadas/divertidas/advertidas/galhofadas/cismadas/armadas/amadas por você.

Obrigada pelos abraços e pelo convite para juntas armarmos a bomba enquanto sarramos e lutamos, viajamos e amamos no espiral do tempo,

Calila das Mercês

Calila das Mercês

Nasceu em Conceição do Jacuípe (BA), em 1989. É poeta, escritora e jornalista, com doutorado em literatura brasileira. Autora de Planta oração e Notas de um interior circundante e outros afetos.

 

Rascunho