Dias felizes e um amor louco

"Esperando Bojangles", do francês Olivier Bourdeaut, aborda de modo sensível a complexidade das relações familiares
Olivier Bourdeaut, autor de “Esperando Bojangles”
01/10/2022

Olivier Bourdeaut viveu um caminho tortuoso na escrita de seus romances. O autor relata que vinha de fracasso em fracasso, sofrendo bloqueio criativo antes de concluir Esperando Bojangles. Quando enfim conseguiu colocar o ponto final, apresentou o manuscrito à avó, que após a leitura jogou os papéis no lixo. “Medíocre”, avaliou a professora de latim, quase centenária. O pai reagiu do mesmo modo. Por sorte, a mãe, livreira em um hospital, adorou a história — prenúncio de um retumbante sucesso editorial, que começou de forma despretensiosa em uma editora de Bordeaux e terminou vendido para diversos países. O romance rendeu mais de 650 mil leitores na França desde sua publicação, em 2016.

Um legítimo best-seller, o que para muitos pode soar como barreira, mas convida a pensar o entretenimento como categoria, desvinculando-a do meramente raso ou fácil. Considerando um contexto europeu, é válido lembrar que em um país como a França, o livro se implantou cedo e criou um público consumidor, como frisa José Paulo Paes em A aventura literária ensaios sobre ficção e ficções. O crítico e poeta tece importante reflexão acerca de livros com êxito editorial, problematizando a noção de que boas vendas equivalem à carência de qualidade. Em seu país de origem o romance até hoje ocupa as gôndolas das livrarias, constituindo o que Paes chamou de vigorosa literatura de entretenimento. Agradou também aos espectadores, que em 2021 puderam assistir à adaptação do romance para o cinema por Régis Roinsard, no filme protagonizado por Virginie Efira e Romain Duris.

Agilidade na trama
No Brasil, o livro ganhou nova edição este ano, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar. Esperando Bojangles manipula conhecidos códigos literários e abraça características do bom folhetim e do melodrama: agilidade na trama, ganchos bem construídos e muita emoção (na leitura se ri e se chora, na mesma medida). O eixo central dessa prosa saborosa gira em torno da visão de uma criança sobre sua família: narrado na maior parte do tempo em primeira pessoa, o romance nos coloca diante do olhar de Gary, fruto entre espantado e maravilhado da singular forma de vida dos pais. A rotina é uma eterna festa para esse casal que se ama loucamente em uma Paris glamorosa no início dos anos 1970, promovendo jantares inesquecíveis frequentados por tipos divertidos, em que todos bebem e dançam até o raiar do dia. Tratam o filho de forma amorosa e atenta e sonham se descolar da enfadonha realidade, ignorando todo tipo de convenção social. Pela casa circulam dois elementos fundamentais, a mascote Mademoiselle Supérflua, pássaro semelhante a uma garça que ostenta no pescoço um colar de pérolas, além do amigo Senador, importante apoio para as peripécias do grupo e chamado carinhosamente de “O Lixo”.

Nesse contexto peculiar, os pais se dedicam a contar estórias fascinantes ao filho, na fabricação de múltiplas fabulações. “Não me tratava como adulto, nem como criança, mas como um personagem de romance. Um romance que ela adorava com ternura, e no qual mergulhava a todo instante. Não queria ouvir falar de amolações nem de tristeza”, afirma sobre a mãe. Trata-se da percepção da criança sobre alguém que oscila entre a mais terna das matriarcas — capaz de se divertir inventando brincadeiras e jogos — e uma figura irascível, que nos momentos de crise faz irromper gestos surpreendentes, quando não violentos.

Esses adoráveis malucos se recusam a pagar as contas acumuladas, dispensam o filho de ir à escola, escapam da clínica psiquiátrica em uma fuga de cinema, cruzam foragidos a fronteira entre França e Espanha. Dias felizes se acumulam, mas para Gary não é difícil perceber quando o maremoto se aproxima, em mudanças de humor e irritação que geram medo e insegurança. Mr. Bojangles, a bela canção na voz de Nina Simone, embala os momentos de melancolia da genitora. Sempre o mesmo vinil, sempre a mesma música a evocar estados de alegria e tristeza, como uma cena fundadora de sua personalidade. Sobre seus traumas, o narrador nos diz pouco — e isso é muito bom. Em poucas linhas se delineia um passado de sofrimento, sem maiores detalhes ou aprofundamento. Cabe a nós imaginar o tamanho desse abismo.

A narrativa também apresenta a perspectiva paterna, materializada nos cadernos de Georges, em que anotações pessoais se misturam às do filho e dão a ver sua radiografia da própria mulher: “O tempo de um coquetel, de uma dança, de uma mulher louca e com asas, me deixara louco por ela, convidando-me a partilhar sua demência”. Como não amar alguém tão adorável, “um Dom Quixote de saias e botas”, que devora a vida com tamanho ímpeto? Não há espaço para arrependimentos, e na escrita do pai fica clara a consciência da própria loucura ao partilhar aquela jornada com tamanha intensidade. Vale a pena, pensa ele, mesmo que em dado momento o trem comece a descarrilar e as tempestades emocionais da esposa se intensifiquem, abalando o precário equilíbrio familiar. E então ela é internada.

Sem tédio
A segunda metade do romance dá a guinada final em direção à realidade. É quando fica evidente o talento do escritor, ao fazer brotar poesia de situações duríssimas sem atenuar o quadro doloroso da doença mental. O binômio mulher e hospício rima muitas vezes com violência de gênero, já que vários desses espaços de exclusão ao longo da história recebiam mulheres de comportamento considerado divergente — no romance, a passagem pela instituição psiquiátrica adquire tintas divertidas, com ênfase na capacidade sedutora da protagonista. Ciosa de ser muitas mulheres em uma só, ela se recusa a atender sempre pelo mesmo nome, desejo prontamente atendido pelo marido: Constance, Colette, Camille, Marine e Louise são algumas das alcunhas adotadas nessa rotina em que não há espaço para o tédio.

Mas proteger alguém de sua própria enfermidade e constatar que nem sempre se pode retirá-la dessa condição é um desafio, e essa tarefa se agudiza quando do outro lado está uma criança. Nunca saberemos o nome real dessa mulher, assim como não poderemos distinguir verdade e mentira no testemunho do filho a respeito de um cotidiano tão vibrante quanto assustador. Como voyeurs, participamos dessa vida desregrada, saindo dela um tanto arranhados e encantados. “Quanto a vida for banal e triste, invente uma história para mim, você mente tão bem, seria uma pena nos privar”, pedira-lhe a mãe certa vez. Gary agarra com unhas e dentes esse lema para a sobrevivência e o torna norte para sua própria aventura imaginária.

Esperando Bojangles
Olivier Bourdeaut
Trad. Rosa Freire d’Aguiar
Autêntica
124 págs.
Olivier Bourdeaut
Nasceu em 1980 em Nantes (França) e é autor dos romances Pactum solis (2018) e Florida (2021). Esperando Bojangles ganhou em 2016 o Prix France Culture/Télérama 2016 e o Grand Prix RTL-Lire, entre outros prêmios.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
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