Dias de ficção

"Os dias da crise", de Jerônimo Teixeira, apoia-se em diferentes pontos de vista para refletir sobre a política no Brasil
Jerônimo Teixeira, autor de “Os dias da crise”
30/03/2020

Apesar de muitas teorias, os protestos de junho de 2013 continuam inexplicáveis. Decifrá-los seria o desejo de muitos historiadores, antropólogos e outros analistas. A ficção pode mergulhar no período, pode passear pelos fatos, pelas supostas causas do movimento, sem compromisso e sem o dever de apresentar resposta. Muitos eventos, hoje considerados históricos, tiveram o mesmo percurso. O maio de 1968, na França, começou como um protesto estudantil que, pouco a pouco, foi conquistando outras camadas sociais, acabando por se transformar em um movimento quase espontâneo, que pleiteava causas mais diversas. Nossos levantes de junho de 2013 tiveram origem parecida. Se não todos universitários, mas jovens estudantes que pleiteavam o passe livre e protestavam contra o aumento de vinte centavos no preço das passagens, desencadearam o movimento. O resto da história já se conhece.

Os dias da crise, de Jerônimo Teixeira, traz este tema no seu miolo, como elemento contextual e, até certo ponto, elemento motor da narração. Mas o leitor, ao experimentar os primeiros eventos do livro, precisa aguardar o momento chave. Alexandre, um narrador em primeira pessoa, trabalha numa empresa em crise, dessas que contratam um executivo supostamente famoso, capaz de tirá-la da lama. A primeira medida, apesar dos eufemismos, é corte de pessoal. Outra estratégia do tal executivo é o lançamento de um novo produto, desconhecido por quase todos os funcionários, cuja revelação é mantida em segredo até as últimas páginas do livro.

Como elemento de composição de sua história, o autor dispõe de vários núcleos narrativos. O primeiro deles é o grupo de empregados, na empresa à beira da falência. O segundo trata-se de um círculo de amigos que compõe o que costuma chamar de “círculo da blasfêmia”, uma espécie de encontros onde se discutem problemas filosóficos e religiosos, tendendo para a banalização do pensamento filosófico e para a crítica sagaz à religião.

Aqui, abre-se um parêntese, cita-se com frequência um personagem de literatura, Teufelsdröckh, de Thomas Carlyle, que, na nomenclatura dos dias de hoje, poderia ser considerado, para resumir a coisas, um escritor e pensador de extrema-direita. O personagem, de nome difícil de pronunciar, servirá de modelo para executivos e frequentadores do mundo dos negócios, local apropriado para o debate de teorias comportamentais, uma espécie de autoajuda empresarial. Interessante o livro se servir de Carlyle, um pensador nascido no final do século 18, quando as ideias liberais pareciam ter a solução para os problemas vindouros. Interessante, ainda, acreditar-se que, em pleno século 21, elas podem ser de bons augúrios. Só mesmo como ironia, ou, quem sabe, como sátira.

O terceiro núcleo é o núcleo familiar, onde se desenvolve algum debate entre irmãos, em meio a outros personagens que circulam em um ou outro dos dois núcleos.

Outro ponto é o relacionamento amoroso-sexual entre o narrador e Helena, uma mulher de meia-idade, livre e de ideais de esquerda, recém-aprovada num concurso para professora de literatura brasileira na USP. A entrada em cena da personagem, num momento festivo, e o relacionamento que ela passa a ter com o narrador, embaralham as possíveis tomadas de posição que o romance poderia apresentar ou mesmo criticar. Assim como a presença de uma suposta crítica ao liberalismo econômico, Helena vai representar a crítica ao pensamento oposto, à futilidade ideológica daqueles que têm emprego garantido e uma qualidade de vida acima da média mas adotam posições de esquerda, embora se beneficiem do sistema universitário vigente.

O que se pode deduzir até aqui é certa fragilidade nos posicionamentos políticos, tornando o romance porta-voz não de uma crítica fundada ao capitalismo ou mesmo a ideais socialistas, mas um meio de corroborar o pensamento de oportunistas, espertos, candidatos ao sucesso a qualquer preço. O objeto a ser criticado acabaria endossado.

Narrador suspeito
No começo do livro há uma frase do narrador: “Não gosto de ler. Ninguém gosta. Mente quem diz o contrário”. Caso não seja uma pilhéria, não se pode levar a sério um romance que se inicie com tais dizeres. Daí para frente, torna-se suspeito tudo que vem da voz deste narrador. Mais adiante, continua: “No entanto, leio, li. Frequentei os clássicos que interessam. Não sou o filisteu típico que vegeta nos ambientes corporativos”. Então, percebe-se a fuga através da literatura, não deseja ser um filisteu, a cultura serve de estofo para conseguir um pseudolugar na sociedade. A literatura estabelecer-se-ia como salvaguarda, como método de conduta, ditaria a via para alguém não se tornar um filisteu. Talvez uma tese para se desenvolver num doutorado de teoria da literatura, caso queiramos trilhar a mesma rota do narrador.

Voltando aos embates de junho de 2013, encontramos Alexandre, sempre este narrador altivo, não seria pleonasmo dizer, do alto de seus um metro e noventa, como nos informa, acompanhando a namorada, Helena, numa das manifestações, em São Paulo. Aliás, uma das mais reprimidas pela polícia. Num determinado momento, ele afirma que por pouco não atirou a primeira pedra, num momento em que um grupo de manifestante se enfileirava diante de um prédio público. O que faz um ser humano, de formação humanista, alguém de meia-idade, que até então teve uma vida medida pela razão, ser levado a tal atitude? Pergunta ele, e conclui: é muito fácil se deixar levar pelo sentimento exacerbado, sobretudo quando já não se apresenta como indivíduo, mas como participante de uma massa.

Relacionamento pai e filha também se mostram presentes, porque a moça, muito criticada pelo pai, surpreende-se ao vê-lo, o mesmo Alexandre, em meio à turba, a fugir dos golpes da polícia e das bombas de gás lacrimogênio.

O livro dá a entender que o momento político em que vivemos tem o seu estopim nas manifestações de 2013. A escalada conservadora teria crescido através de um movimento — entre aspas — desideologizado, portador, no seu núcleo duro, do lastro reacionário, antipolítico, individualista, que se estende nesses tempos sombrios de 2019/2020 e sabe-se lá até quando. Tal interpretação daria um caráter datado ao livro, e tornaria a ficção um tanto farsesca, dados que não comportam a uma obra de amplitude literária.

Melhor seria lembrar Dostoiévski, quando retrata fatos políticos sem querer encontrar neles causas de levantes ou de revoluções, mas a miséria ou a grandiosidade da alma humana, em toda sua complexidade, comportando inclusive o ressentimento. Mas, ainda citando Alexandre, o narrador, quando opina sobre o autor de Crime e castigo: “Já disse que li os clássicos que interessam. Dostoiévski, porém, larguei pela metade. Não tenho paciência com ressentimento social”. Admira-me que o personagem tenha conseguido chegar à metade. Pois leu grande coisa. Uma página do escritor russo vale por centenas de páginas de muitos outros perdidos por este nosso mundo.

Os dias da crise
Jerônimo Teixeira
Companhia das Letras
128 págs.
Jerônimo Teixeira
Nasceu em Montenegro (RS), em 1968. É editor executivo da revista Veja. Jornalista e mestre em letras, com tese publicada sobre Carlos Drummond de Andrade — Drummond cordial (2005) —, lançou a novela As horas podres (2007) e os contos de Antes do circo (2008). Vive em São Paulo (SP).
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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