Em Caderno proibido (1952), um dos principais romances da italiana Alba de Céspedes, acompanhamos cerca de seis meses na vida de Valeria Cossati, ou melhor, lemos o que ela escreve neste período. O livro que temos em mãos é o diário da protagonista, o tal “caderno proibido” do título. Na primeira entrada do diário, Valeria, uma mulher de classe média na casa dos quarenta anos, diz: “Fiz mal em comprar este caderno, muito mal. Mas agora é tarde demais para lamentar, o estrago está feito”.
A sensação de perigo que o caderno representa segue a protagonista ao longo de todo o romance, afinal, é através da escrita diarística que ela acaba por fazer uma análise de sua vida, refletindo sobre seu casamento, a maternidade, o emprego, a relação com os filhos e principalmente, a situação da mulher à época (estamos nos anos 50 do século passado).
Valeria vai se dando conta dos caminhos que a levaram ao momento em que está — a mulher que cuida de todos mas se sente despojada de sua própria interioridade e seus desejos, simplesmente seguindo o que era considerado natural para as mulheres de sua geração. Deste ponto de vista, o caderno é devastador pois joga em sua vida uma luz antes inexistente, trazendo questionamentos e angústias. Não é à toa que ela está o tempo todo tentando escondê-lo de seus familiares e considerando a possibilidade de destruí-lo. Aquelas páginas passam a ser o único espaço em que ela se expõe abertamente, uma terapia por meio da escrita. Ao buscar esconderijos para seu caderno, Valeria lamenta o fato de não ter um espaço só seu, um lugar de introspecção dentro do ambiente doméstico em que pudesse ficar em paz para escrever:
Seja como for, tenho quarenta e três anos e me parece vergonhoso recorrer a subterfúgios infantis para escrever num caderno. Por isso, é absolutamente necessário que eu confesse a Michele e aos meninos a existência deste diário e afirme meu direito de me fechar num aposento para escrever quando tiver vontade.
Autonomia e independência
O desejo de Valeria de se isolar para escrever acaba ecoando o famoso ensaio de Virginia Woolf, Um teto todo seu. Neste conhecido texto, baseado em duas palestras que Woolf proferiu em 1928, a autora modernista diz que uma mulher precisa de duas coisas se quiser se tornar uma escritora: dinheiro — 500 libras por ano é a quantia citada por Woolf à época — e um espaço próprio dentro de casa onde possa, sem interrupções e distrações, se dedicar a seu próprio trabalho. Por trás desses dois itens há a defesa da autonomia e da independência da mulher, ideias conflituosas para Valeria, pois ela se encontra muito identificada com o papel social que assumiu dentro do contexto da época. Embora a protagonista não pretenda se tornar uma escritora profissional, ela acaba exercendo essa atividade pois o romance que lemos é seu diário. A menção a Woolf é pertinente pois é apenas pelo isolamento e pela escrita que Valeria encontra um lugar próprio e passa a ser capaz de analisar sua vida. No entanto, ainda que a prática diarística lhe forneça esse lugar de reflexão e liberdade, na vida cotidiana, Valeria se vê cada vez mais enredada nas funções esperadas para uma mulher da época.
Apesar de ter um emprego por conta das dificuldades financeiras da família — o que a diferencia de suas amigas —, Valeria só é vista pelas lentes da mãe e dona de casa (é sintomático que seu marido a chame de “mamãe”). Há um choque geracional bastante explorado no romance, especialmente na relação entre Valeria e sua filha. Mirella comporta-se de um modo inadmissível para a mãe: costuma chegar tarde em casa e envolve-se com um homem casado. Mais adiante, arruma um emprego em um escritório de advocacia e começa a estudar para se tornar advogada. Valeria preocupa-se com a reputação da filha e questiona suas atitudes. Há constantes embates entre as duas, mas também momentos de compreensão e admiração. Mirella tem ideias próprias e gosta de defendê-las, representando uma mudança na forma de uma mulher se posicionar no mundo, o que assusta Valeria. No que se refere ao papel da mulher, tema mais relevante do romance, a protagonista constantemente reflete sobre sua mãe e sobre sua filha, vendo-se em um espaço de solidão:
Sinto tudo em mim confusamente e não posso falar disso com minha mãe nem com minha filha, porque nenhuma delas compreenderia. Pertencem a dois mundos diferentes: um que acabou, junto com aquele tempo, e o outro que nasceu dele. E em mim esses dois mundos colidem, fazendo-me gemer. Talvez seja por isso que muitas vezes me sinto desprovida de consistência. Talvez eu seja somente essa passagem, essa colisão.
Quanto a outros pontos do enredo, é importante citar a personagem Clara, a única amiga de Valeria que não seguiu o roteiro padrão das mulheres da geração. Clara é divorciada, não tem filhos e trabalha no ramo do cinema. Valeria a admira. É o símbolo da mulher que teve a coragem de seguir uma alternativa nada comum à época. Outro tema de destaque é o affair que aos poucos se estabelece entre Valeria e seu chefe, Guido. É nesta relação que Valeria voltará a se sentir desejada como mulher. O caso entre os dois é repleto de conflitos extensamente detalhados no diário. Quando Valeria finalmente começa a considerar uma viagem com Guido, a gravidez de Marina, namorada de seu filho, a aprisiona novamente no ambiente doméstico. Valeria terá que organizar o casamento, acolher a nora, e se preparar para a chegada do neto.
A trajetória de Valeria me remeteu ao conhecido conto Amor, de Clarice Lispector, publicado em Laços de família (1960). O contexto de época no que se refere ao papel da mulher guarda semelhanças com o romance e a protagonista Ana, no caso do conto, é uma dona de casa que se vê sem função quando o marido e os filhos não estão presentes. Ao sair para fazer compras, Ana se depara com um cego mastigando chicletes e tem uma espécie de revelação. A visão deflagra uma crise na protagonista clariceana, desestabilizando-a. Uma interpretação possível seria pensar que ela associa a escuridão experimentada pelo cego ao modo alienado com que vive a própria vida, em função dos outros e esquecida de si. No entanto, mesmo diante de todo o turbilhão interno experimentado por Ana na sequência, o conto termina com seu retorno ao lar, o preparo do jantar e o abraço do marido.
O movimento de Ana é semelhante ao de Valeria que, após todos os conflitos trazidos à tona pelo diário, decide queimá-lo para não correr o risco de voltar a enfrentar aquelas questões. É claro que a opção por se conformar não anula as reflexões anteriores da protagonista e um dos pontos fortes do romance é justamente o refinamento crítico com o qual ela analisa o que lhe acontece. No entanto, o diário mostra que ela não consegue encontrar uma saída para o que a angustia.
É curioso pensar que Valeria tem apenas 43 anos. Para os parâmetros de hoje, ainda haveria muita vida a ser vivida e riscos a se correr. Contudo, ela tem essa idade nos anos 1950, o que torna suas possibilidades bastante limitadas. Valeria Cossati é uma típica mulher de seu tempo, atravessada por circunstâncias históricas e amarras sociais que acabam por moldar sua forma de pensar e sua vida. A força de Caderno proibido está na capacidade de provocar essa reflexão em perspectiva, fazer com que pensemos sobre nossas mães, nossas avós, sobre o que estava vedado às mulheres de ontem e sobre as possibilidades e desafios que temos hoje.