Diário do medo

"Do outro lado da porta", de Juliana Monteiro, é uma reflexão profunda sobre a morte, a vida, a memória e a impermanência
Juliana Monteiro, autora de “Do outro lado da porta” Foto: Daniela Dib
01/09/2025

“O que existe do outro lado da porta?” Essa é a pergunta feita por João Anzanello Carrascoza na quarta página de Do outro lado da porta, da artista visual Juliana Monteiro. “Sempre o que não é nosso”, ele mesmo responde — ou talvez apenas conjecture. O outro lado da porta é, sempre, mistério. Aquilo que não alcançamos. O que tentamos vislumbrar pela fechadura, mas que nunca se revela por inteiro. Aquilo que podemos apenas imaginar.

O outro lado da porta pode ser também o outro lado da vida, onde reside o maior de todos os mistérios. Apesar de sabermos que só o instante presente é garantido, não costumamos pensar que podemos, a qualquer momento, passar para o lado de lá — exceto se estivermos vivendo uma situação de iminente ameaça à vida.

Foi o que aconteceu em março de 2020, com a chegada do vírus da covid-19 ao Brasil, quando o perigo que já rondava o mundo bateu à nossa porta. Em poucos dias, foi decretada a quarentena que nos manteve em casa por meses. Qualquer coisa que viesse do lado de fora era uma ameaça.

Aqueles que contraíram o vírus nos primeiros meses — quando ainda não havia vacinas, testes, leitos hospitalares suficientes e sabia-se muito pouco, ou quase nada, sobre como combatê-lo — viveram a rigidez do isolamento social por quatorze dias ou mais: a solidão de sofrer com sintomas severos de um vírus desconhecido, o receio de uma internação que os isolaria por completo do contato com outras pessoas e, por fim, o pior dos medos: uma morte solitária, sem despedidas. Foi o que aconteceu com mais de setecentos mil brasileiros.

Do outro lado da porta é um testemunho desse período. Primeiro título da coleção Rosa Brava — dedicada a publicar autoras que trabalham imagem e palavra para construir narrativas sensíveis sobre a vida das mulheres em nosso tempo —, o livro é, ao mesmo tempo, um relato pessoal e um registro do que vivemos coletivamente durante aqueles meses.

Juliana Monteiro narra sua experiência ao contrair covid ainda antes do início oficial da quarentena, sentindo os primeiros sintomas no começo do isolamento social, ao lado do marido e da filha, então com três anos. O livro parte dos registros escritos e fotográficos daqueles dias que passou isolada em um quarto, como um diário, e acompanha a autora pelos meses que se seguiram entre a recuperação de um corpo e de uma mente fragilizados e a superação do medo através do cotidiano com a filha.

Inicialmente construído de forma artesanal e em tiragem única, como outros trabalhos da autora, o livro é uma costura de textos, fotografias, colagens e desenhos que nos conduzem por uma reflexão profunda sobre a morte, a vida, a memória e a impermanência — temas que atravessam toda sua obra.

Leio as palavras e imagens de Juliana e revivo o horror e o medo daqueles primeiros dias que se estenderam por meses e que ainda nem estão tão distantes assim no tempo: “190 mil mortos e é Natal”. Dias em que tivemos todos de lidar com o perigo do lado de fora, do lado de dentro e com um futuro incerto.

Como mãe que também viveu a pandemia e o isolamento social com duas crianças, senti o desespero de imaginar a separação: “Eu não posso morrer, filha. Não posso deixar você sem mãe”. Ao mesmo tempo, agradecia diariamente pelo fato de o vírus não ser tão letal para elas. Por não serem as crianças as maiores vítimas, apesar de todas as consequências emocionais que recaíram sobre elas. Fosse o contrário, eu pensava, seria ainda mais insuportável.

Agarrar-se à alegria
Foi esse o pensamento mágico ao qual me agarrei durante todo aquele período — assim como ao universo das crianças. Assim como fez a autora, ao se agarrar à alegria da filha do outro lado da porta: “Você me empresta sua alegria, e eu tropeço, aos prantos”.

Logo no início, Juliana se dirige à filha e esclarece sua escolha por narrar o correr dos dias enquanto eles acontecem:

(…) escrevo para que um dia você saiba o que vivemos, com a voz de quem conta o agora. Sem desvios da memória.

Como uma autora habituada a trabalhar com o tema da memória, ela sabe os efeitos que o tempo causa nas lembranças. Essa escolha faz com que tenhamos em mãos justamente um relato que nos transporta de volta a uma experiência que, por vezes, parece já ter ficado para trás. É preciso lembrar para não esquecer, e nenhuma voz nos aproxima mais dos acontecimentos do que a voz que narra o agora.

A experiência da autora ao escrever um diário de seus dias de isolamento pode ser vista como um ensaio, real e visceral, da separação. Um ensaio de como pode ser difícil, para uma mãe de filhos pequenos, passar para o outro lado da vida. Um ensaio cuja possibilidade de consumação é iminente:

Vou para o hospital. Meu pai vai me levar. Deixo este caderno aberto, nesta página, em cima da cama. Se eu não voltar, por favor, entregue-o para minha filha. Nunca se esqueça do meu amor, filha.

Um ensaio que é, ao mesmo tempo, experimento e experiência.

E não estamos todos nós, mortais, nesse lugar — às vezes mais, às vezes menos conscientes — todos os dias?

Leio as palavras e imagens de Juliana e enxergo também seu olhar. Um olhar presente, atento e que, apesar do medo, da falta de ar e da solidão de tempos tão adversos, não deixa de procurar a poesia. E a encontra nos detalhes: na luz do sol que entra pela janela sempre no mesmo horário — “O sol entra no quarto às 12h42 e desenha uma linha diagonal.” —, nos objetos, nas memórias, no olhar da criança.

Através da sensibilidade e delicadeza com que a autora nos conduz, revivemos o medo, sim, mas revivemos também aquilo que nos faz resistir às adversidades da vida. Por certo, o olhar poético, alimentado pela alegria e resiliência da filha, lhe serviu de âncora durante aqueles dias e os que se seguiram. Dias de voltar a um corpo debilitado: “Foi difícil voltar ao corpo. Oito quilos a menos”. E de retomar, pouco a pouco, a normalidade: “As aulas presenciais vão voltar, e eu ainda não consigo sair de casa”. Dias em que o exercício do olhar poético, por meio de imagens e palavras, a conduziu por um percurso pessoal de volta a si mesma, ao seu novo eu: “Aquela não existe mais. Vou abrir a porta. Sei que estou pronta, agora, depois de me reencontrar em você, filha”.

E não é essa, afinal, a função da poesia? Uma forma de estar no mundo.

Uma ferramenta de transformação para lidar com o que a vida nos impõe — e com o mistério do outro lado da porta.

Do outro lado da porta
Juliana Monteiro
Vento Leste
184 págs.
Juliana Monteiro
É artista visual, formada em Linguística, com pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte do MAC-USP. A partir de fotografias, palavras e colagens, observa a infância, a impermanência e a relação entre palavra e imagem. É autora de diversos livros, entre eles Catálogo de perdas (2017), escrito em parceria com João Anzanello Carrascoza, finalista do Prêmio Jabuti e vencedor do FNLIJ.
Tatiana Eskenazi

É escritora, poeta e fotógrafa. Autora dos livros de poemas Seu retrato sem você e Na carcaça da cigarra.

Rascunho