Diário de uma artista

Livro de Patti Smith reúne fotografia, memória e referências artísticas, políticas e filosóficas em formato de caderno de anotações
Patti Smith, autora de “Um livro dos dias”
01/03/2024

Ler Um livro dos dias é como ter acesso a um caderno de anotações. A obra reúne fotos e legendas publicadas ao longo de um ano no perfil no Instagram da cantora, compositora e escritora norte-americana Patti Smith. Os posts estão no perfil @thisispattismith. Esse “caderno de anotações” reúne, portanto, 1,2 milhão de seguidores na rede social (em dezembro de 2023). No espaço homogêneo e afetado do mundo digital, é um alívio acompanhar uma artista compartilhando memórias e reflexões com tanta sensibilidade. Como livro, essas publicações ganham uma dimensão ainda mais poética — assim como é poética a observação que Patti faz da realidade, dos seus ídolos e de sua história pessoal.

Um livro dos dias reúne 336 fotos e legendas criadas pela artista. A primeira postagem é de 20 de março de 2018. São imagens de arquivo feitas por ela mesma com sua câmera fotográfica, ou com seu celular, e outras de arquivo — a maioria sem menção à autoria. As legendas vêm de anotações em um bloquinho ou no celular.

No texto de abertura da obra, ela afirma que essas “legendas e imagens são chaves para destravar os próprios pensamentos”. É uma forma mais interessante de olhar para registros cotidianos. Isso tem a ver com o poder da fotografia, mas também da escrita. Observar a relação que Smith faz entre a texto escrito e imagens é uma oportunidade de acessar uma parte de seu fluxo criativo.

Essas são minhas flechas, apontando para o coração singelo das coisas. Trezentos e sessenta e seis jeitos de dizer olá.

Entre os temas das publicações, ela valoriza algumas efemérides, como datas de aniversários de pessoas próximas e de artistas que a inspiraram, mesmo os que já morreram, mas cuja obra ainda repercute na sua criação. Em outro trecho do texto de abertura, ela diz:

Depois de viver tantas perdas, encontrei consolo frequentando os cemitérios onde estão as pessoas que amo, e visitei muitos deles, para oferecer minhas preces, meu respeito e minha gratidão.

É impossível não reconhecer as inúmeras imagens de túmulos na sequência do livro como um aspecto sagrado das viagens ou caminhadas da artista, um contato com a energia daquela pessoa, seja para prestar uma homenagem ou buscar um sinal de sorte.

Quem leu os outros livros da autora talvez veja isso com ainda mais naturalidade. Algumas das passagens mais bonitas têm a ver com momentos mágicos e emocionantes em visitas a túmulos ou registros de objetos de pessoas que ela ama e já se foram. O impacto da morte de ídolos, amigos ou familiares é bem visível em sua obra. Smith descreveu em Só garotos (2010) sua relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, que morreu em 1989. Também conta — entre várias outras histórias — sobre a perda do irmão no indispensável Linha M (2016).

Seus outros livros, portanto, também são sobre memórias. No entanto, para além de um registro da própria vida, são seu ponto de vista sobre o mundo, sobre pessoas que a influenciaram, personagens importantes em sua formação como escritora, artista visual, compositora, cantora. Porém, nada nesses relatos soa repetitivo, porque os livros foram muito bem divididos, por assim dizer, em diferentes aspectos dessa vida tão múltipla e efervescente.

Quanto a Um livro dos dias, trata-se de um tipo de memória evidentemente mais fragmentada, rápida, submetida às limitações da rede social, e há uma variedade muito maior de temas e imagens. Mas, acima de tudo, existe uma linguagem, uma peculiaridade no olhar. Característica que diz respeito não somente a escolhas artísticas e pessoais, mas ao modo de juntar as peças da própria história.

Personalidades como Sylvia Plath, Albert Camus, Joan Baez, Roberto Bolaño, Bob Dylan, Walt Whitman, Allen Ginsberg e Virginia Woolf estão entre essas peças importantes na sua formação. Nas últimas páginas, o livro apresenta até uma lista de sugestões de leituras nesse sentido.

Se, por um lado, Um livro dos dias trata do passado, Patti Smith segue atenta aos acontecimentos recentes do mundo, em especial às crises políticas e ambientais. Mas acima de tudo, trata-se uma obra sobre o amor à arte. Além da música e da literatura, a fotografia funciona como referência emocional para ela, que circula entre artistas como Anne Leibowitz, carrega suas câmeras quando sai para caminhar, parece estar sempre atenta ao mundo e disposta a registrá-lo.

A leitura do conjunto faz lembrar muito os pensamentos da ensaísta Susan Sontag e do sociólogo e filósofo Roland Barthes sobre a importância da fotografia. Objetos pessoais, objetos de ídolos — há uma foto da escrivaninha de Jorge Luis Borges na Biblioteca Nacional de Buenos Aires, por exemplo —, paisagens, obras de arte, estão ali como referentes emocionais, uma maneira de montar o tempo, um “certificado de presença”, uma marca do que foi e do que é.

Um livro dos dias
Patti Smith
Trad.: Camila von Holdefer
Companhia das Letras
400 págs.
Patti Smith
Nasceu em 1946 em Chicago (Estados Unidos). Nos anos 1970, ganhou destaque com sua fusão de poesia e rock e seu disco Horses (1975) é considerado um dos mais influentes da história. Também tem trabalhos nas artes visuais. Como escritora, publicou poesia em Babel (1978) e Auguries of innocence (2005). No Brasil, outros livros já publicados são Só garotos — vencedor do National Book Awards —, Linha M, O ano do macaco e Devoção, todos pela Companhia das Letras.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho