Recentemente, o escritor Alberto Manguel, nascido na Argentina e radicado no Canadá, teve dois de seus livros lançados no Brasil. O primeiro, Os livros e os dias, é, como o título sugere, uma coletânea de comentários em forma de diário acerca da experiência do autor com algumas de suas leituras prediletas. Pouco tempo depois, a mesma editora (Companhia das Letras) lançou O amante detalhista, uma novela de pouco mais de 90 páginas na qual Manguel reconstitui a trajetória de Anatole Vasanpeine, o misantropo francês cuja paixão por figuras e imagens se manifesta a partir daquilo que não está em primeiro plano, exposto, mas sim das particularidades escondidas nas pequenezas. Entre esses dois livros, muito se falou acerca do primeiro, ressaltando a perspicácia do autor na defesa da literatura clássica, em detrimento dos textos de, como se diz?, entretenimento (!). Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, o trecho que mereceu destaque foi o ataque de Manguel à obra de Paulo Coelho. Entretanto, não houve qualquer menção, até onde este resenhista conseguiu acompanhar, no sentido de relacionar a novela do escritor ao seu diário de leitura. Pois é fundamental que se faça essa relação a fim de que se possa compreender como as duas obras apontam Alberto Manguel como leitor e escritor detalhista.
A princípio, é curioso que o título original de Os livros e os dias seja A reading diary (algo como diário de leitura). Isso porque, ao contrário do que se possa imaginar, Alberto Manguel pincela as obras comentadas nessa coletânea sem seguir quaisquer cânones literários ou listas que elejam os melhores livros dos últimos cem anos. A um só tempo, o autor é original e previsível. Como? Original porque escolhe a lista conforme seu gosto pessoal, aleatório e particular, com textos que lhe inspirem afeto. Previsível porque toda lista é pessoal e, portanto, arbitrária. Desse modo, o leitor constata, para o bem e para o mal, que não se trata de uma obra de crítica literária no significado exato da palavra. O tom do livro é, de acordo com suas próprias palavras no prólogo, uma conversa.
O primeiro indício de que o autor escreve com essa informal sinceridade torna-se perceptível assim que se lê quais foram os livros selecionados. Entre o Dom Quixote de Cervantes e O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati, há O signo dos quatro, de Arthur Conan Doyle, assim como A ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells. Não, leitor, este articulista não pretende fazer juízo de valor em relação às obras. Contudo, não é preciso ser um decano de literatura para saber que algumas das obras selecionadas por Manguel não são os livros mais citados pelos literatos, e muito menos pelas cátedras universitárias. Antes, os livros estão ali porque de alguma forma se encaixam no objetivo do autor de fazer um ensaio que, com efeito, seja literário, mas que não perca de foco seu caráter saudável, sem protocolos — como deveriam ser, aliás, todas as conversas sobre livros e autores.
Desse modo, os comentários são sempre precedidos por uma história que situa o escritor e a cidade em que ele se encontra (Manguel está sempre em trânsito). Assim, o leitor já participa de uma trajetória entre livros, autores e lugares. Por exemplo: os comentários acerca de A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, ocorrem simultaneamente ao retorno de Alberto Manguel à Argentina. Na sua terra natal, ele encontra o país em grave crise econômica e ebulição social (em meados de 2001). Sua análise não perde a notável contradição: “[Nesse momento], a ruína do país gerou misteriosamente uma atmosfera palpável de criatividade, como se artistas e escritores tivessem decidido de repente fazer surgir das cinzas aquilo que lhes foi roubado”. O fato de escrever em forma de diário faz com que ele assinale os momentos mais interessantes tanto dos livros como do universo ao seu redor. Desse modo, há de frustrar aqueles que esperam por análises formais ou historiografia literária. Ao optar pela conversa com os livros, Manguel extrai deles sua partícula mais inusitada, desmistificando o temor e a severidade dos clássicos.
Obviamente, tal (falta de?) comprometimento também possui sua faceta negativa, por assim dizer. Com isso, ao mesmo tempo em que o leitor é tragado por uma subjetividade sem maiores responsabilidades, há o inegável e enfadonho divagar sem sentido, que, de tão impressionista e particular, deixa o tema do livro escapar. Por outro lado, há que se mencionar o fato de Manguel não citar somente as obras que são listadas no índice. Falar de livros, muitas vezes, é relacionar outras leituras, ele escreve. E, dessa forma, o autor passeia por Swift, Chesterton e Proust, assim como por Platão e seu mito da caverna.
Ainda assim, o que mais chama a atenção nesses comentários é a maneira singular como o escritor relaciona as temáticas das obras analisadas com o seu cotidiano. Ao longo do livro, nota-se que a relação inicial entre Bioy Casares e a Argentina não se deu por acaso. Nos 12 capítulos de seu livro, Manguel amarra sua história à narrativa das obras, sempre tomando destas uma interpretação para discorrer sobre os caminhos que ele, como escritor de seu tempo, escolhe. Os livros, portanto — mais do que qualquer erudição intangível —, possuem a chave para o entendimento de dias cada vez mais conturbados, nos quais os ataques de 11 de setembro podem ter ressonância nas Memórias de além-túmulo, de Chateaubriand: “O assassinato nunca será aos meus olhos um objeto de admiração e um argumento pela liberdade, não conheço nada mais servil, mais desprezível, mais covarde, mais tacanho que um terrorista.” Do mesmo modo, As afinidades eletivas, de Goethe, é a obra a partir da qual se torna possível conceber como a inevitabilidade dos acontecimentos é algo que pode surpreender até os mais céticos. Como se tudo estivesse escrito, nosso cotidiano, parece crer o autor, não vai além do que já está traçado nas linhas do destino, sempre de acordo com a referência dos livros.
Ao tratar de afinidades, um paralelo torna-se possível. Na novela O amante detalhista, o protagonista também possui um diário; e, como diz o título, também é obcecado pelas minúcias do que está ao seu redor. Nesse caso, no entanto, o objeto de desejo é a fotografia — fator que lhe dará prazer e infortúnio. Como uma espécie de novela de formação, o livro apresenta Anatole Vasanpeine desde a infância, quando já parecia alguém descolado do seu contexto, até o momento em que descobre sua eterna paixão. Nesse meio tempo, sua personalidade é moldada graças a uma série de acontecimentos que, tal como em As afinidades eletivas, é fruto do acaso, como o encontro com o mestre, o Sr. Kusakabe, que lhe iniciará na arte da fotografia (que, àquela época, no início do século 20, ainda continha certo resquício da daguerreotipia). A partir daí, Vasanpeine segue um caminho de descobertas trazidas para o leitor, vejam só!, com o auxílio de relatos em diários. Manguel, aqui no papel de historiador, se debruça sobre a reconstituição da vida desse amante minimalista das imagens. Para muitos, era alguém que se contentava com muito pouco, principalmente porque não acreditava na beleza como algo absoluto; preferia a parte ao todo.
Ainda no campo das semelhanças, Manguel não se esquiva e faz outra referência a Platão. Nas palavras do escritor:
Vasanpeine estava invertendo o conceito platônico de arquétipos sugerido tantos séculos antes num jardim ateniense: para ele, o universo não era a incorporação de formas preexistentes, mas de formas que, pelo contrário, lutavam para atingir uma existência arquetípica que ele, Vasanpeine, era capaz de proporcionar mediante o clique do obturador de sua câmera.
E se o leitor quiser mais semelhanças (ou coincidências), as encontrará à medida que avançar na leitura das duas obras. Não é o caso de afirmar que Alberto Manguel repete fórmulas. Nada disso. Pelo contrário. Com a argúcia de um detalhista, ele expõe seu prazer por coisas que nem sempre estão ditas. Prefere, em vez de se sentir guiado pelo olhar e pela leitura automáticas, a companhia da intuição para desvendar os mistérios dos prazeres escondidos. Possui, para tanto, um método. É graças à observação que o autor cumpre a tarefa (árdua, diga-se) de descrever sensações ora escritas em livros, ora presentes nas imagens do fotógrafo.
Assim, embora sejam obras distintas no tocante ao gênero, tanto o diário de leitura como o perfil histórico de Anatole Vasanpeine mostram como Alberto Manguel é um amante detalhista da literatura.