Diante do prazer

Em “O leitor comum”, Virginia Woolf discorre sobre autores clássicos que sempre a acompanharam
Ilustração: Ramon Muniz
01/08/2007

Naquele tempo, certas doenças — que farão este texto parecer jurássico —, como sarampo, catapora e outras do gênero, condenavam as crianças à cama por alguns dias. Benditas mazelas que me jogaram ao confinamento e me concederam a intimidade do silêncio aos meus cinco anos de idade na gélida São Gabriel. Foi nesse capítulo de minha existência que aprendi a ler. Lia gibis que meu pai trazia na tentativa de aplacar a monotonia. Fez-se o hábito, mas passados alguns meses, veio o aviso: “está na hora de ler livros sem figuras”. E começaram a vir biografias, romances, Mario Quintana, Erico Verissimo; e aos meus doze anos, Guerra e paz; e logo em seguida, Os possessos. Não, não teve Monteiro Lobato. Também não freqüentei jardim de infância. Já estou creditando a essa lacuna a responsabilidade pelo fim dos meus casamentos e certa dificuldade para recortar. Seja qual for, não dá mais para remendar. Por estes e outros episódios é que não acredito e repudio a idéia da tal da reencarnação, nem pensar em ser filho de outro, mas se pudermos deixar tudo acertado de antemão, quem sabe. De modo que esse homem que me ensinou a ler é meu modelo de leitor. Um leitor comum assim como eu.

Essas lembranças me chegaram durante a leitura de O leitor comum, de Virginia Woolf, livro de ensaios selecionados a partir de duas séries publicadas em 1925 e 1932. São onze textos da primeira e três da segunda série em que o leitor perceberá as preferências da autora pelos escritores ingleses — Conrad, Jane Austen, Daniel Defoe, Shakespeare — e pelos estrangeiros — Montaigne, Dostoiévski, Tchekhov e Tolstói, este, no entender de Virginia, o maior de todos.

Convém não esquecer Kant. Estamos diante de juízos da autora, juízos reflexivos. O fato de ser uma autoridade no fazer literário, não significa o mesmo quando se trata de analisar a literatura. E as análises de Virginia neste O leitor comum são tão somente subjetivas. As tentativas de aproximação com o leitor são revestidas de uma sisudez auto-referente que em determinados momentos, na ânsia de ensinar como fazer literatura, faz lembrar certos livros de auto-ajuda. Sugiro que, concluída a leitura da coletânea de Virginia, leia, curioso leitor, ou melhor, aprecie sem moderação A literatura na poltrona, coletânea de ensaios recém-lançada pela Record, de José Castello.

Não estou cometendo nenhuma heresia, simplesmente sigo o recomendado por Virginia Woolf:

Nesse momento se projetam em nossa mente os modelos dos livros que lemos já consolidados por juízos que sobre eles nos transmitiram — Robinson Crusoe, Emma, The Return of the Native. Compare os romances com esses — mesmo o último e menor dos romances tem o direito de ser examinado diante do melhor.

A comparação não foi, contrariando Virginia Woolf, no sentido de definir o melhor. Creio que a definição de melhor e pior seja mais adequada às imposições do jóquei clube. Quis simplesmente chamar a atenção para um livro em que erudição, descontração e conhecimento do fazer literário se unem no sentido de aproximar o leitor comum, autores e obras. Importante ressaltar que em Castello o leitor não percebe em momento algum estar diante do texto do “dono da verdade”, já em Woolf… Talvez por isso, não encontremos nele os equívocos, as contradições cometidas por ela em suas investidas pelo território da crítica. Você está esperando um exemplo? Pois bem: sua editora, a Hogarth Press, rejeitou os originais de Ulisses e Virginia falaria mal do romance de Joyce — “uma memorável catástrofe” — até o dia de seu derradeiro mergulho.

Porém, e porém, via de regra, é sinal de perigo, Mrs. Dalloway (1925) narra um dia na vida de uma mulher e Ulisses (1922) relata um dia na vida de um homem. Que coincidência! Mas não é só isso. To the lighthouse (1927) é o relato de algumas horas na vida de algumas pessoas e nessas horas é permitido ao leitor ver o passado e o futuro delas. Não, ainda não acabou. Em Orlando (1928), talvez sua obra mais conhecida, todos sabem que o tempo é o protagonista. Só mais um exemplo, com a sua permissão paciente leitor. Em As ondas (1931), a autora confere a cada hora de um determinado dia, desde o amanhecer até a noite, uma época de sua vida.

Você também achou estranho? Notou algumas semelhanças? Tempo, tempo, tempo… E tudo depois da publicação da “memorável catástrofe” que a autora lia nas páginas de Little Review. É… mas o que seria da literatura sem as contradições? Relevemos… relevemos, pois.

Ilustração: Ramon Muniz

Pontos altos
Convém lembrar os pontos altos de O leitor comum. O primeiro é Como se deve ler um livro? — curioso ensaio a respeito do rigor poético com que o leitor deve enfrentar suas leituras. Aqui a autora deixa de lado todo o formalismo e regras que pululam em todas instâncias referentes à literatura. Vale o livro.

O segundo é Ficção moderna. Escrito em 1919, elege justamente o autor de Ulisses como a grande expressão desse novo tempo. É nesse momento que Virginia lê Ulisses na Little Review e a respeito da cena do cemitério diz: “A cena no cemitério, por exemplo, com seu brilho, sua sordidez, sua incoerência, seus súbitos lampejos de significação, penetra sem dúvida alguma tão no cerne da cabeça que, mesmo em uma primeira leitura, é difícil não proclamá-la uma obra-prima”. Vai entender…

O terceiro é O ponto de vista dos russos, em que a autora estabelece a grande diferença entre os russos, os três anteriormente citados, e os demais autores. Diz Virginia que na obra de Dostoiévski e de Tchekhov sobressai a alma, enquanto na de Tolstói predomina a vida. Soa estranha a precisão com que a autora faz tamanha distinção. Este aprendiz não vê pela mesma lente e arrisca dizer que os três são na verdade grandes filósofos que conseguem emprestar corpo às idéias.

Paciente leitor, pouco tempo depois de aquele homem dizer com expressão inesquecível que chegara a hora de ler livros sem figuras, ele trouxe para nossa casa Guerra e paz e Os possessos, de modo que posso dizer que cresci com os russos. Mais tarde, ao dar de cara com a união do gênero policial e o melodrama em Crime e castigo, me permitiu ver como é possível trazer o fato mais comezinho para o ambiente erudito. Com a sua permissão, caro leitor, importante lembrar que uma das influências de Nietzsche foi justamente Dostoiévski.

Pois excetuando a permanência do juízo vale a pena a leitura de O leitor comum, mas, por favor, leia A literatura na poltrona depois. Sempre depois.

Antes de concluir, é bom voltarmos à questão do tempo na obra de Virginia Woolf, para ser mais preciso, nas citadas anteriormente em que tal característica foi apontada como devedora do Ulisses, de James Joyce. Porém, olha o porém aqui de novo, vale ressaltar nossa tendência a incensar o estrangeiro, na esteira vem também o estranho e aos “da casa” nosso esquecimento.

Combinamos que o assunto seria o tempo, então vamos lá: você já leu Pedro Nava? Você já leu O tempo e o vento, a saga dos Terra Cambará e dos Amaral, percebeu os significados cunhados por Erico Verissimo para tempo e memória?

E eu concluo me perguntando o que diria Virginia Woolf a respeito.

Bem, lidos Virginia e Castello, vou reler Incidente em Antares em meio ao vôo no tempo que me levará àqueles dias de confinamento e silêncio.

O leitor comum
Virginia Woolf
Trad.: Luciana Viégas
Graphia
136 págs.
Virginia Woolf
Nasceu em Londres, em 25 de janeiro de 1882, terceira dos quatro filhos de Julia e Leslie Stephen. Seu pai, editor e filósofo, procurou dar aos filhos a melhor educação. Virginia Woolf, como era comum às mulheres da época, nunca freqüentou regularmente uma escola. Desde menina tinha contato com o mundo intelectual e literário através dos amigos do pai, mais tarde os substituiria pelos amigos de seus dois irmãos universitários de Cambridge. Virginia escreveu alguns dos mais importantes romances do século vinte: Orlando, As ondas, Mrs. Dalloway, Uma casa assombrada”. Morreu em 28 de março de 1941, aos 59 anos, afogando-se nas águas do rio Ouse, cidade de Lewles, condado de Sussex, Inglaterra. Escreveu duas cartas de despedida, uma para sua irmã Vanessa Bell, outra para o marido, Leonardo Woolf, e se dirigiu ao rio, pôs uma pedra grande no bolso de sua capa, e mergulhou.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho