No posfácio da edição brasileira de Padre Sérgio, de Lev Tolstói, o crítico e tradutor Boris Schnaiderman sentencia, logo de saída, que a novela “constitui certamente um dos momentos mais patéticos de toda a obra tolstoiana”. A afirmação virulenta tem uma explicação: no final da história, o autor russo dá uma virada inexplicável na trama e a termina de maneira péssima: redentora, moralista, tendenciosa. Um desfecho decepcionante que quase arruína um livro que vinha tão bem.
Tolstói é daquelas figuras cuja vida foi tão marcante, tão cheia de episódios famosos, que às vezes acaba transpondo sua obra. Filho da aristocracia, o conde e militar acabou passando por uma profunda transformação na vida adulta. Veio uma profunda imersão na religião, causada por sérias crises existenciais. Porém não na igreja, que ele desprezava. Acabou excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa e escreveu:
Considero todos os sacramentos uns sórdidos e grosseiros sortilégios, sem conformidade com a compreensão de Deus e contra o ensinamento cristão, além de serem uma transgressão direta aos preceitos do Evangelho (…) Acredito no seguinte: acredito no Deus que entendo como espírito, como amor, como começo de tudo. Acredito que ele esteja em mim e eu, nele. Acredito que a vontade de Deus está expressa da forma mais clara e mais compreensível no ensinamento de Cristo homem, mas considero o maior sacrilégio tomá-lo por Deus e dirigir-lhe orações.
Insatisfeito, Tolstói fundou o tolstoismo (definido por ele como “anarquismo cristão”) e isolou-se com seus seguidores na fazenda Iásnaia Poliana. Apreciava os camponeses, pregava o desapego aos bens materiais, defendia o matrimônio e o sexo apenas como reprodução. Se por um lado influenciou positivamente figuras como Gandhi ao pregar a não-violência, por outro se tornou um moralista incorrigível, a ponto de renegar o conceito de arte, diletante demais a seu ver, desprendida da utilidade de ajudar a sociedade.
As novas idéias influenciaram as obras seguintes do mestre. Em casos como o de Padre Sérgio, de maneira decisiva, como observou Boris Schnaiderman. Quando, porém, a pregação não influenciou — ao menos diretamente — a feitura dos livros, o resultado manteve o nível das obras-primas Guerra e paz e Anna Kariênina. É o caso da sublime novela A morte de Ivan Ilitch, com tradução do próprio Schnaiderman. Livro a que não se podem fazer reservas. Cada palavra ali é indispensável. Mesmo em menos de oitenta páginas, o autor conseguiu ser tão perfeito quanto nas centenas de Anna Kariênina, por exemplo. E o Tolstói pregador não ofuscou o escritor.
A esta altura, todos conhecem o enredo. Ivan Ilitch é um medíocre funcionário público que, ao dar de cara com a morte, faz uma revisão detalhada de toda a sua vida e percebe o quanto a desperdiçou com bobagens, futilidades mundanas e com a companhia de gente falsa e interesseira, caso de seus colegas de trabalho e de sua esposa, que nunca conseguiu e mesmo se esforçou para compreendê-lo. Há que se fazer uma ressalva para comentar a maestria da estrutura do livro. Publicado em 1886, A morte de Ivan Ilitch parte de um flash-back que, décadas depois, seria imitado pelo cinema em filmes como Cidadão Kane e A condessa descalça. Os supostos amigos do personagem, não exatamente com pesar (“cada um dos que estavam reunidos no gabinete teve por objeto a influência que essa morte poderia ter sobre as transferências ou promoções”), recebem a notícia de sua morte. Um deles vai velá-lo e vê a viúva interessada nos processos que possam aumentar sua pensão. Tudo o que ele deseja é sair logo dali e jogar uma partida de uíste.
Homem comum
A partir do segundo capítulo percorremos a biografia de Ivan Ilitch. Vem de uma família de funcionários como ele. É o orgulho de seu pai, brilhante nos estudos, centrado e honesto, ao contrário dos irmãos. Tem um início de carreira normal, até ser promovido a juiz de instrução, conseguir subir na vida e ganhar status na sociedade. Passa a se relacionar apenas “entre os nobres ricos ou com cargos judiciários”, e ali conheceu sua futura esposa, Prascóvia Fiódorovna. Entregam-se então aos prazeres que o salário robusto de Ivan proporcionava, até que vêm os filhos, a relação se deteriora, alguns filhos morrem doentes. Ilitch acaba se metendo em intrigas no trabalho, é prejudicado e vê as críticas crescerem. Um retrato exato do homem comum: um tanto arrivista e adulador, porém não imoral e vulgar; medíocre e alienado, mas com boas intenções; sem grandes altos ou grandes baixos.
No meio desse percurso, Ivan Ilitch sofre um acidente doméstico: uma queda, a princípio inofensiva. Aos poucos surge uma dor no lado do corpo, que vai aumentando progressivamente, até vir a matá-lo, após uma longa agonia. Sua esposa e seus filhos têm cada vez menos paciência para com o enfermo — estão mais interessados em levar adiante suas próprias vidas sociais. O único que consola Ilitch é o copeiro Guerássim, um modelo de amizade e estoicismo. Ele percebe o grande erro que foi a sua existência: “a vida não pode ser assim sem sentido, asquerosa. E se ela foi realmente tão asquerosa e sem sentido, neste caso, para quê morrer, e ainda morrer sofrendo? (…) Talvez eu não tenha vivido como se deve”.
Aqui já podemos notar os elementos que definem o estilo tardio de Tolstói — as figuras dadas ao dinheiro e à ascensão social, mais do que à alma e ao espírito, a figura do homem comum, tão capaz de errar quanto acertar, e que merece tanta misericórdia quanto os espíritos mais elevados, a presença de Guerássim, uma alma caridosa e abnegada, vinda, certamente não por coincidência, das classes baixas. O próprio acidente de Ivan Ilitch, banal e tolo, é sintomático: Tolstói possuía um medo tremendo da morte, e temia que ela pudesse vir a qualquer momento, da maneira mais casual e inesperada.
O que faz de A morte de Ivan Ilitch tão superior às obras ulteriores do russo é a sutileza com que os tópicos são tratados. Aqui, Tolstói preferiu trocar a pregação pela ironia, em comentários sardônicos: “Na realidade, havia ali o mesmo que há em casa de todas as pessoas não muito ricas, mas que desejam parecê-lo e por isto apenas se parecem entre si” (uma subversão da célebre primeira frase de Anna Kariênina [“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”]?). Ou quando o médico vai examiná-lo, hipócrita, já sabendo da não-possibilidade de cura: “a expressão significativa, que sugeria o seguinte: basta que você se submeta a nós, e havemos de arranjar tudo, sabemos sem nenhuma dúvida como arranjá-lo, temos um padrão único para todas as pessoas”.
Em momento algum Ivan Ilitch, deitado no leito e agora imbuído de razão, podendo observar a futilidade nos outros, parece julgá-los ou colocar-se em uma posição moralmente superior. Ele tenta compreender a esposa, os filhos. Afinal, ele está lá, sofrendo e gritando de dor o dia todo. Seu sentimento de compaixão não é hipócrita, nem passa por altruísmo em relação aos outros ou comiseração em relação a si próprio.
A iminência do fim causa arrepios em Ilitch: “‘Não, não quero (…) Para quê? Tanto faz’ (…) Sufocava de raiva. Teve uma sensação penosa, torturante, intolerável. Não podia ser verdade que todos estivessem condenados para sempre a este medo terrível”. No fim, entretanto, ele se resigna, por saber que livrará a família de sua presença agonizante. Livrará a si mesmo da dor. Ele procura o medo, mas “em lugar da morte, havia luz”. Sem moralismos ou tons edificantes. E Ivan prova ser uma espécie de alter ego de Lev Tolstói, que, numa carta à igreja, escreveu que à medida que professava sua fé, “vivo tranqüilo e feliz, e tranqüilo e feliz vou-me aproximando da morte”.