Diante de si, no espelho

O amplo uso da autobiografia por Philip Roth na construção de uma das mais importantes obras da literatura contemporânea
Philip Roth por Oliver Quinto
01/05/2023

Philip Roth — um dos maiores nomes da literatura norte-americana do século 20 e eterno candidato ao Nobel em seus últimos anos de vida — estreou na cena literária em 1959 com Adeus, Columbus e outras histórias. A novela que deu título à coletânea narra a história de Neil Klugman, um jovem judeu de classe média-baixa que mora no centro de Newark com os tios e estuda filosofia, e seu romance com Brenda Patimkin, uma moça também judia, mas de classe muito mais alta e cuja família representa o processo de assimilação que acompanhou a ascensão econômica e social dos judeus norte-americanos nos anos 1950. Embora escrita alguns anos depois do ocorrido, a narrativa foi tirada da experiência biográfica de Roth, que em seus anos de faculdade tinha namorado — e observado atentamente — a filha de uma família de judeus que, como os Patimkin, moravam nos subúrbios e frequentavam um clube de campo.

Contudo, mais do que a inspiração para Brenda é a personagem de Neil Klugman que já apresenta a maneira como Roth usaria os elementos autobiográficos em sua obra: embora o protagonista possua uma vida interior própria, sua localização étnica e socioeconômica é muito similar a de seu autor. Como Neil, Roth também foi um jovem judeu de classe média baixa inteligente demais para o mundo que o cercava e com grandes ambições intelectuais. O uso da autobiografia não se dá tanto na personagem olhada, Brenda, mas naquele que olha.

Narradores parecidos
Alguns escritores — Kazuo Ishiguro e Ian McEwan, por exemplo — são hábeis em narrar a partir de uma série de pontos de vistas diferentes: suas histórias são contadas por robôs, mordomos, mulheres, idosos e crianças e parte do que as torna interessante é precisamente essa reorganização do mundo que se dá quando o escritor habita a mente de um novo narrador. Roth, por outro lado, nunca foi esse tipo de romancista. Ao contrário, em todos os seus livros os narradores são homens judeus que trabalham como escritores ou professores universitários, que cresceram em Newark e nunca são mais velhos do que o autor era no momento de sua criação. Ou seja, mesmo quando se aventura com protagonistas radicalmente diferentes de si mesmo — o Sueco Levov, de A pastoral americana é o mais importante deles —, Roth olha para eles a partir de narradores muito parecidos com ele. A organização de seu mundo é sempre alinhada à constituição identitária do escritor.

Isso não quer dizer que toda a ficção de Roth seja composta por relatos autobiográficos apenas levemente modificados, nem mesmo que o uso dessa autobiografia e lugar narrativo sejam simples. Ao contrário, Roth não só se inspira em sua vida para escrever ficção, mas usa como material literário a reflexão a respeito desse próprio movimento e explora de maneiras cada vez mais complexas as relações entre autobiografia e literatura.

Esse movimento se mostra na relação entre os livros que o escritor publica logo após Adeus, Columbus, Letting go, de 1962, e Quando ela era boa, de 1967, e My life as a man, de 1974. Os três livros são inspirados no complicado relacionamento dele com Maggie Williams, sua primeira esposa. Mas enquanto os dois primeiros trazem uma narrativa tradicional e um tanto melodramática, o último reflete menos sobre o casamento em si e mais sobre como esse casamento virou literatura.

My life as a man é dividido em duas partes: Ficções úteis e Minha verdadeira história, e uma nota introdutória informa ao leitor que ambas foram retiradas dos escritos de Peter Tarnopol. As Ficções úteis são dois contos que narram a vida e o conturbado casamento de Nathan Zuckerman, um escritor nascido nos subúrbios de Nova Jersey, enquanto Minha verdadeira história é a narrativa do criador de Nathan Zuckerman, Peter Tarnopol, a respeito de seu próprio casamento conflituoso. Zuckerman é o mecanismo pelo qual Tarnopol escreve sua história e busca compreender a psicologia e as ações de sua mulher. A história de Tarnopol, por sua vez, é uma versão romanceada do casamento do próprio Philip Roth com Maggie Williams e narra integralmente episódios que mais tarde Roth revisitaria em sua autobiografia.

A “verdadeira história” de Peter Tarnopol é facilmente reconhecível nas “ficções úteis” de Zuckerman, mas também é possível notar como os acontecimentos “reais” são uma inspiração, um ponto de partida que é modificado de acordo com as necessidades da ficção.

Alter ego
Contudo, há ainda uma terceira camada uma vez que o interesse de Roth em destrinchar para o público o processo de transformação da vida em arte veio de sua experiência com os leitores após a publicação de O complexo de Portnoy, em 1969. Embora se tratasse de um romance totalmente ficcional — os Portnoy haviam sido inspirados em vizinhos, Roth afirmava —, os leitores a tomaram como autobiográfica e Alexander Portnoy como um alter ego de Philip Roth. Em diversas entrevistas e alguns ensaios, o escritor tentou desfazer essa confusão, mas a resistência do público em separá-lo de sua criação mais famosa levou-o a eventualmente parar de brigar contra essa narrativa e só absorvê-la também como material de ficção. A partir de 1974, Roth mergulha em um projeto autobiográfico que primeiro faz uso de um alter ego, mas em seguida coloca o próprio escritor como personagem e que está sempre refletindo acerca dos desencontros entre vida, obra e percepção do público.

É curioso que após Minha vida de homem não seja Peter Tarnopol que Roth escolha seguir usando, mas Nathan Zuckerman. Esse personagem, criado como símbolo da passagem entre vida real e ficção, se tornaria seu alter ego, talvez em uma espécie de lembrete para seu fã atento de que todos os romances de Zuckerman são “ficção úteis” baseadas em uma vida real muito menos emocionante.

Zuckerman aparece como protagonista pela primeira vez em O escritor fantasma, de 1979, seguido por Zuckerman libertado, em 1981, A lição de anatomia, em 1983, e A orgia de Praga, em 1985. Anos depois, os romances foram reunidos em uma coletânea chamada Zuckerman acorrentado, que acompanha o trajeto de Nathan Zuckerman como escritor, de seu início à consagração e é uma obra que costura acontecimentos da vida do próprio Roth com diversas referências literárias, comunicando ao leitor que um escritor é sempre uma mistura inseparável do que viveu e do que leu.

Zuckerman é de tal forma uma elaboração de Roth sobre sua própria vida que ao escrever sua autobiografia a primeira atitude do autor é pedir a opinião dele. Em 1988, pouco depois de ter completado a série sobre Zuckerman, Roth publicou Os fatos: A autobiografia de um romancista. Tal como Zuckerman acorrentado, a autobiografia se foca na formação do escritor, começando na infância e indo até o momento da escrita de O complexo de Portnoy quando Roth entrará definitivamente na cena literária mundial.

Fase autobiográfica
A publicação de Os fatos inaugura o que alguns comentaristas chamariam de “a fase autobiográfica” de Roth, isso porque a partir daí ele publicaria uma série de livros em que o protagonista seria um homem chamado Philip Roth, cujos dados biográficos correspondem com exatidão aos dele mesmo. Contudo, isso não quer dizer que todos esses livros sejam autobiografias propriamente ditas: o grau de verdade e também o grau do acordo feito com o leitor variam enormemente.

Embora Os fatos se apresente como uma autobiografia e o corpo do livro de fato traga um relato fiel da juventude do autor, ele traz não só essa carta de Roth a seu personagem, mas uma resposta de Nathan Zuckerman na qual afirma que o título do livro é apto, uma vez que Roth realmente comunica a verdade dos fatos. No entanto, há uma verdade mais profunda, Zuckerman diz, a verdade dos sentimentos, que está ausente do livro e que Roth é incapaz de acessar sem a ajuda da ficção, portanto do próprio Zuckerman.

Como que confirmando a opinião de seu personagem, em 1990 Roth publica Deception, um romance formado por uma série de diálogos entre um escritor chamado Philip e sua amante. Juntos no estúdio dele, o casal conversa a respeito de seu relacionamento, do casamento de Philip e do livro que ele está escrevendo. Fica imediatamente claro para o leitor que a vida desse Philip se parece muito com a de Philip Roth, o escritor, e que o livro no qual ele está trabalhando lembra bastante O avesso da vida, publicado em 1986. Se o projeto iniciado em My life as a man era o de examinar as relações entre vida e literatura, é possível considerar que Os fatos afirma quão estreita é essa relação, mas Deception mostra as duas coisas como efetivamente inseparáveis e indistinguíveis.

Esse ponto é feito com mais força no final do livro, quando Philip está discutindo com sua esposa após ela ter encontrado um caderno com os diálogos que acabamos de ler.

Ele afirma que se trata apenas de um romance, ao que ela argumenta que o público não saberia disso, assim como ela também não sabe. Philip pode acreditar que a verdade, se isso se trata de realidade ou ficção, não é importante, mas para ela a confusão do público tem um impacto real. Roth, é claro, está ciente do impacto dos erros de percepção do público desde sua estreia como escritor, mas o que esse livro parece dizer é que após escrever diversos romances sobre isso, ele está finalmente pronto para aceitar essa ilusão como inevitável. Se não pode controlar o pacto que seu público estabelece com sua obra, ele pode tornar o estabelecimento de qualquer pacto no mínimo duvidoso.

A “fase autobiográfica” de Roth seguiu durante os anos seguintes com livros diametralmente opostos: em 1991 aparece Patrimônio, um livro de memórias a respeito dos últimos anos do pai de Philip, Herman Roth. É um relato repleto de sentimentos ambíguos, mas factualmente honesto a respeito da deterioração física de Herman e que, no entanto, serve ao livro em que Roth usa a autobiografia de forma mais complexa: Operação Shylock, de 1993.

Esse livro leva o subtítulo de “uma confissão” e começa firmando com seu leitor o que parece um pacto autobiográfico bastante claro: o narrador é um homem chamado Philip Roth, escritor, que mora com sua mulher Claire Bloom e está prestes a viajar para Israel onde deve conduzir uma série de entrevistas com o também escritor Aharon Appelfeld. Philip, o narrador, conta a respeito de seus problemas cardíacos, menciona a morte do pai e narra o colapso mental que sofreu por conta do sonífero Halcion, informações a que seu público já teve conhecimento tanto em Patrimônio como em Os fatos.

Narrativa mirabolante
Porém, já no início da obra esse pacto começa a se complicar, com uma narrativa mirabolante e improvável. Operação Shylock é um grande apanhado de informações contraditórias a respeito de sua relação com a realidade: por um lado, diversos personagens são retirados da vida real, como Roth e Appelfeld, por outro a trama é bastante improvável. Os elementos paratextuais seguem o mesmo padrão: a nota de abertura do livro informa que tudo que será narrado ali é verdade e omissões foram feitas apenas para preservar a segurança dos envolvidos, mas a nota no final da história afirma que tudo se trata de uma ficção. O livro também se espalha para além da narrativa ali contida: as conversas entre Roth e Appelfeld que aparecem no romance são as mesmas que haviam sido publicadas no New York Times um ano antes, reforçando a ideia de que ao menos parte da história aconteceu realmente. No mesmo jornal, Roth publicou um pequeno artigo intitulado A Bit of Jewish Mischief que reforça a afirmação de que os estranhos incidentes narrados em Operação Shylock são reais, ao mesmo tempo que faz um elogio do engano e da “malcriação” como mecanismos libertadores.

Operação Shylock, Roth eventualmente assumiu, trata-se de um romance. Mas é certo que elementos dele foram retirados da realidade e a inserção do próprio Philip Roth como personagem não é incidental. Temática e formalmente o livro é a última parte da investigação que o escritor fez sobre a relação entre literatura e biografia e ele se desdobra em uma reflexão acerca da forma como narrativas e identidade se formam mutuamente.

O último livro em que Roth usará a si mesmo como personagem é Complô contra a América. Publicado em 2004, o livro é uma ficção alternativa na qual em 1942 em vez de Franklin D. Roosevelt ser eleito para seu terceiro mandato é Charles Lindbergh, piloto e notório antissemita, quem vence as eleições e se torna presidente dos Estados Unidos. Uma vez no poder, Lindbergh instaura uma série de medidas de perseguição que tem como objetivo levar os judeus-americanos ao desaparecimento por meio de uma assimilação radical. O foco do romance é a família Roth, os pais Bess e Herman e os filhos Sandy e Philip. Não há dúvidas de que Complô contra a América é uma obra de ficção, mas ao inserir sua família real na narrativa, Roth traz o real para dentro do romance e reforça seu ponto de que a literatura revela verdades que a simples história fatual é incapaz. É uma ficção, mas também uma história real a respeito de autoritarismo e preconceito nos Estados Unidos.

Dessa maneira, é possível olhar para o uso que Roth faz do elemento autobiográfico como um meio de investigação. Ao se inserir de forma tão inextrincável, mas também tão enganosa em seus livros, ele pensa como funciona a ficção e do que ela é feita e ao mesmo tempo como funciona a própria identidade. Qual é esse “eu” que é incorporado aos romances? O que são a verdade, os fatos ou os sentimentos? O que faz de Roth o autor que ele é e o homem que ele é e como essas coisas se alimentam? A ficção de Philip Roth não oferece respostas, mas complica infinitamente as ideias que os leitores tinham a respeito de tudo isso.

Philip Roth
Nasceu em 1933, em Newark, Nova Jersey (EUA). Vencedor de vários dos principais prêmios literários do planeta, como o Pulitzer (1997), por Pastoral americana, o National Book Awards e o National Book Critics Circle Awards (ambos em duas ocasiões), ele foi laureado em 2011 com o Man Booker International Prize. Recebeu da Casa Branca a National Medal of Arts, em 1998, e a National Humanities Medal, em 2010. Philip Roth também foi o único escritor americano a ter sua obra completa publicada em vida pela Library of America. Faleceu em 2018, aos 85 anos.
Isadora Sinay

É doutora em literatura e tradutora.

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