Um livro partido. O novo romance de Márcia Tiburi forma-se a partir de duas narrativas seqüenciadas. Em bem menos da metade do livro, 219 páginas, Leda analisa o que vem a ser o depoimento deixado em nove fitas cassetes por sua mãe, Berenice, e transcrito na segunda parte do texto, Livro na claridade ou Livro da trama. Naturalmente, essa opção narrativa nos remete ao meta-romance, uma técnica bem difundida. Em nossa literatura, seu melhor exemplo é o texto de A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins, onde o narrador, às voltas com uma pensão deixada pela mulher que morreu enlouquecida, encontra o romance que ela escrevia.
O problema deste tipo de opção narrativa é se criar uma certa confusão entre os estilos. Em outras palavras, muitas vezes as duas narrativas, o romance em si e o romance paralelo, são tão iguais que cai um tanto por terra a solução. Em O manto acontece isso. A construção das frases e as opções semânticas estão muito próximas, mesmo com a autora trabalhando com personagens até díspares, a filha e a mãe, e formas também distantes, a análise profunda de um texto, “sei que escrever é gravar”, escreve Marcia, e um depoimento falado. Por questões de origem as duas formas exigem particularidades que foram esquecidas pela autora. O coloquialismo da segunda se confunde com o formalismo da primeira e vice-versa.
Neste aspecto vale salientar que um dos pressupostos do romance é o caos, a confusão que se forma nas cabeças das duas mulheres. Elas fazem balanços das perdas e das inutilidades de suas vivências. No entanto é fundamental para o leitor ter a certeza de que se trata de duas vidas, de duas personagens de caráter e formação distintas, e por mais que a filha tente se juntar à mãe, as diferenças afloram naturalmente. E isso quase não acontece no livro.
Ao contrário, as intervenções da filha, com longas notas de rodapé, no trabalho da mãe demonstram a simbiose profunda. Elas se confundem mesmo nesta narrativa onde se privilegia o caos. Ainda assim a ausência de diferenças mais claras termina por empobrecer o texto como um todo.
A verdade é que O manto não é um livro de fácil leitura. Marcia Tiburi leva ao paroxismo as dores e as loucuras das personagens. Tudo se envolve em névoas e incertezas. A rigor o enredo, de tão banal, se faz até frágil; a filha que encontra no espólio da mãe nove fitas com o longo e caótico depoimento. Curiosamente o novo romance de Ivana Arruda Leite, Alameda Santos, parte do mesmo princípio, o depoimento de uma mulher gravado também em nove fitas, só que aqui há uma certa ordem no caos. Em Marcia Tiburi não, o caos vai aos extremos.
A necessidade de pôr mais lenha na fogueira, de intensificar a desordem demonstra a segurança da escritora. Ela faz de tudo para se perder no meio do caminho, às vezes até perde o ritmo da narrativa que se torna lento e, em alguns momentos, cansativo, para logo retomar o fôlego, a marcha dos fatos. Talvez aí resida uma das maiores ousadias da Trilogia íntima, já em si bem ousada. Márcia começa o livro dando ao leitor a análise profunda e intensa de um texto que ele desconhece, arriscando assim matar todo o interesse pelo romance.
Depois das revoluções
A solução que apresenta para levar o leitor até o final das 623 páginas é exatamente o manejo do meta-romance. O tempo todo, particularmente na primeira parte do livro, discute a condição do escritor, a necessidade da escrita, da ficção como um todo. E aí entra num campo que ela, Marcia Tiburi, conhece na intimidade, a filosofia. Só que o saber do qual a autora se faz amante é metafísico e kantiano, quer desvendar a alma das duas mulheres que, a rigor, são sínteses de um tempo.
Essa expectativa, o encontro com os mistérios de Berenice e Leda, instiga o leitor a enfrentar a segunda parte do livro. E aí se jogam fora as formas, as ordenações. As gravações aparentemente são ilógicas, falam de tudo, contam histórias toscas, inacabadas. E tudo isso envolto num manto metafórico que encobre pecados, frustrações, desejos, o mundo, enfim.
Marcia Tiburi faz, destarte, o perfil da mulher após as revoluções. O que sobrou dessa mulher que enfrentou um século por si só caótico, que nasce sob o prisma do mecanicismo e termina envolto num misticismo milenarista? Não que tais mudanças radicais não tenham afetado os homens, mas à escritora interessam as vivências e sensibilidades femininas, interessa o “ser vegetal” de que falava Vinicius de Moraes. Esta dubiedade primordial — a fortaleza da pedra e a fragilidade da flora — forma a mulher construída por Marcia.
Desvendar esta mulher plural, aliás, é a base do projeto da Trilogia íntima. Em Magnólia, a protagonista viaja a seu passado para desvendar um futuro perdido. Já em A mulher de costas a procura é interior, feita para guardar os segredos e mistérios de uma vida. Finalmente, em O manto, temos um impossível diálogo entre mulheres que se querem iguais e por isso salientam suas divergências. Todas as protagonistas, por fim estão em busca de suas perdas. E elas, as perdas, são imensas e definitivas.
Uma última coisa. O que dá mesmo prazer em ler Marcia Tiburi é que ela sabe escrever bem, e isso é artigo raro. Trabalha bem as frases, lapida as palavras, e, embora às vezes verborrágica, usa as letras para dizer coisas e verdades.