Dialética do esquecimento e da linguagem

Resenha do livro "A soleira e o século", de Iacyr Anderson Freitas
Iacyr Anderson Freitas: longe de modismos oportunistas
01/03/2003

Comentar um novo livro de Iacyr Anderson Freitas é apenas um pretexto para tentarmos uma aproximação mais ou menos arbitrária do conjunto da obra deste autor mineiro, que há bons anos vem se dedicando a escavar os profundos sítios de seu imaginário pessoal, atitude que acaba se refletindo em uma vivência comunitária, como em todo bom poeta, que é “antena da raça” (Pound). Os poemas de A soleira e o século flutuam em uma atmosfera variada, mas nem por isso deixam de refletir o espírito que informa a cosmogonia poética/pessoal de Iacyr. Como reunião que é, a obra não poderia deixar de apresentar certas variações, distensões e quebras de diálogo, mas o presente conjunto representa antes de tudo um atestado de maturidade poética do autor.

Com efeito, a obra de Iacyr vem se desenvolvendo silenciosamente em uma direção muito pessoal. O poeta mineiro — e isso é notável — manteve-se puro e independente diante das inúmeras ondas, modas e folkways que assolaram e ainda assolam a poesia brasileira, eterna colonizada, temerosa de encontrar seus próprios caminhos, tal e qual criança mimada (ou abandonada?). Iacyr não se rendeu nem ao apelo dos colonizadores nem à teocracia dos “papas” de São Paulo e Rio de Janeiro, que olimpicamente desconhecem qualquer poesia que não seja feita nos limites geográficos e mentais — sempre estritos — de seus domínios.

Anderson Freitas privilegia a palavra em estado primordial, por isso os temas da linguagem e da comunicação preenchem as linhas mestras de suas peças. Em Iacyr há sempre uma impossibilidade de comunicação que se resolve no desespero de Sísifo ou na “outra vida” de um Lázaro contemporâneo:

Estamos surdos: de minuto em minuto
nascem mulheres prontas
para o amor.
Não vemos.

É que a palavra burilada, com suas forças totais, liberta do racionalismo da linguagem técnica e quotidiana, ameaça o poeta com seus distanciamentos e sua elasticidade. A ele cabe limitar o campo do uerbum, sem, no entanto, despi-lo de sua armadura de significações ou prendê-lo em esquematismos que privilegiam a forma como se fosse uma barragem. Essa problemática tentativa de conviver com a palavra é o que vemos nos poemas de Iacyr:

Toda palavra tem um oco
uma fenda uma avessa
claridade
de onde as formigas emigram.

(…)

Palavra carece de pátria
lugar de raiz e eleição.

Onde adensa sua espera, duas borboletas
grifam a giz a paisagem.

Daí o significado ímpar de seu solipsismo (Estamos surdos para o mundo.), que, de forma paradoxal, tende a romper o cárcere ao qual a poesia foi condenada. O isolamento do “eu poético” de Iacyr não é nada mais do que um momento intermediário, no qual preparam-se as forças necessárias para a dura empresa: aproximar-se do outro. A alteridade então se coloca como momento fundamental do mosaico de Iacyr, que agora não é mais apenas o resultado da angústia existencialista (Sartre), mas antes a experiência da abertura para novas direções/soluções. É necessário trazer para o texto a voz caipira do bravo interior mineiro junto com a eloqüência de artistas e pensadores da história do mundo. Iacyr costura essa caminhada com ecos de suas próprias influências — seria inútil nomeá-las — e falas entreouvidas nos obscuros rincões da memória. Portanto, explica-se seu constante ritual de invocar. Os poemas de Anderson Freitas são como cantos rituais, onde a palavra existe em sua essencialidade; a significação alcança o máximo de concreção nos melhores momentos do poeta, onde as realidades pungentes do mundo se liqüefazem (além dessas paredes/ se exaure o mundo).

Mas se o primeiro passo é superar o isolamento, por meio da linguagem compartilhada, o segmento final da commedia que o autor apresenta em seus livros parece ser a retomada da solidão, não mais como possibilidade negativa do criar, mas sim como mola impulsionadora do próprio processo, que agora se dá no tempo entrevisto não como mera realidade fenomênica, já que passa a ser entendido como totalidade. Entretanto, o tempo-intrínseco em Iacyr não é lenitivo; dialeticamente as posições se invertem e de novo exsurge a irrevogabilidade do nada, imposta à criatura no tempo. O homem é então, ser-para-a morte (Heidegger):

Chegará a hora,
sob o mesmo assombro.

Tudo por fazer, a casa em desordem.
Nenhum dever cumprido.

O mesmo vazio bate à porta.
Não tens palavra. De novo
essa ausência de linguagem
que distende o mundo.

Mas o modus informador da textualização das experiências vivenciais é um movimento contraditório, já que a consciência poética, inicialmente separada do mundo, do outro, do eu-para-nós do qual fala Hegel, descobre que não é a convivência com o alter que faz o diálogo, mas antes a possibilidade — imperfeita, e por isso mesmo humana — de constantemente buscar a significação/igualdade no outro e para o outro. É essa comunicação possível, que se equilibra num fio de faca — perigoso caminhar, perigoso deter-se e olhar para trás, diria Nietzsche —, sempre ameaçada pela ditadura do individualismo, pelo conservacionismo das formas e pela dispersão própria do intelectualismo estéril pós-moderno que Iacyr pretende afirmar e conservar. Tal é a verdadeira significação de seu peculiar pessimismo — o medo de falhar (O tempo não traz resposta. A madureza/ punge os ossos: tua manhã se curva.) — que conforma o conteúdo primordial de seu lirismo (nesta noite (a mesma/ do nascimento de tudo)/ só nosso quarto existe), fecundado por toda a grande tradição da poesia ocidental, pois Iacyr, diferentemente da maioria dos poetas brasileiros contemporâneos, não desconhece e/ou desvaloriza as formas clássicas.

Durante mais de 2.000 anos, a poesia ocidental se fez com base em ritmo, regularidade e forma. Há apenas pouco mais de um século o verso “se libertou”. Ignorar esse processo é ignorar o que é poesia. E o poeta mineiro não cai na doce armadilha de abandonar o difícil e enveredar por uma “poesia livre”, mas falsificada. Demonstra em vários momentos o domínio absoluto da métrica, a respiração do poema (Octavio Paz). Sua série de sonetos que fecha o volume é de prodigiosa atualidade, ainda que a forma, talvez uma das mais utilizadas (abusadas) no Ocidente, dificilmente se preste hoje à expressão poética inovadora que o leitor atento exige. Iacyr consegue, forçando o rigor até seus limites, construir uma poética densa e limpa, características essas, é claro, aplicáveis não só aos sonetos, mas a toda a sua soleira, mineira em sua gênese, universal em sua significação e intimista em sua vontade de afirmar, com a ajuda da solidão e da terrível verdade da temporalidade, a maravilha de ser humano e cantar:

De novo
a imperiosa vontade de viver,

que não deixa de ser, no fundo,
uma forma menor

de esquecimento.

A soleira e o século
Iacyr Anderson Freitas
Nankim/Funalfa
309 págs.
Andityas Soares de Moura Costa Matos

É escritor, tradutor e professor na UFMG. Publicou livros de contos, ensaios e poesia no Brasil, em Portugal e na Espanha. Desde 2019, produz uma tetralogia de neocantigas de escárnio e maldizer, com livros como Deus está dirigindo bêbado e nós estamos presos no porta-malas e Poemas póstumos: fantasias para rapazes e moças durante o genocídio. Com lançamento previsto para o segundo semestre, A escola de direito é seu romance de estreia.

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