Diagnóstico implacável

Retrato inovador das fragilidades da modernização no Brasil, "Circuito fechado", de Ricardo Ramos, ganha nova edição
Ricardo Ramos, autor de “Circuito fechado”
01/08/2012

Um contista por excelência. Embora tenha publicado romances, novelas, memórias e até livros infanto-juvenis e ensaios, foi no conto que Ricardo Ramos promoveu todo o esmero de sua linguagem. Depois de uma breve, mas incompreensível, ausência das livrarias, suas obras voltam a circular e podem ser mensuradas em sua indiscutível importância. Nesta volta surgem, pela Globo, os livros Graciliano: retrato fragmentado, originalmente lançado em 1992, no qual faz um autobiográfico relato da convivência com o pai, o escritor Graciliano Ramos, e Circuito fechado, livro de contos lançado em 1972 que marca uma inovação estilística em sua narrativa.

Sociedade encurralada
No início da década de 1970 vivia-se o começo do que se convencionou chamar de boom do conto. Na esteira de contistas já consagrados, como Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca e o próprio Ricardo Ramos, vem toda uma geração de novos: Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio, Sérgio Sant’Anna, Roberto Drummond. Definitivamente, o discurso se urbaniza e se adensa na denúncia social. A exploração, no entanto, já não se faz sobre operários ou antigos camponeses, migrantes forçados. A própria situação de descontrole urbano é que gera misérias e desestruturações humanas.

Em outras palavras, a cidade que se molda a partir de mudanças na condição humana, ou mesmo do ouro falso vendido pelo discurso da modernidade urbana em contraponto à barbárie campesina, se mostra com força e coerência nesta nova literatura. Interessante é notar que, no entanto, ainda se vivia uma evolução marcada de sutilezas. Os ecos da tradição campestre ainda resvalam, mesmo timidamente, sobre estes novos personagens.

Com Circuito fechado, Ricardo Ramos quebra todas as amarras passadistas. Ainda hoje seu discurso é inovador, pois desce à alma da cena urbana que se construía e, de certa forma, ainda molda nossos costumes atuais. Em um dos contos, Volta de viagem, o escritor chega a antecipar o deslumbre vazio, as futilidades e a xenofilia nascente que assolam os cidadãos que se inauguram. De volta de uma longa viagem em redor do mundo, um casal reúne amigos para falar das maravilhas estrangeiras e exibir os slides de suas vivências. Mesmo a decepção com Londres se estabelece num protesto contra o antigo. E neste ponto até a Argentina e o México parecem maravilhosos mundos renovados.

O leitor, de fato, está diante do diálogo submisso com o mundo sonhado. Tudo rescende novidade, e cultuar o moderno é quase uma ordem. No conto Entrevista com História, este deslumbramento dos personagens se transforma no gesto de curvar-se ante o superior: ainda somos um povo subdesenvolvido que precisa olhar outras gentes com olhos de aprendiz. É o componente de ironia que perpassa todo o livro ao apontar as fragilidades deste suposto rumo ao futuro.

É um jogo de vaidades e ilusões. Como em Retrato sonoro, mais do que simplesmente ir ao mundo, é preciso importar suas maravilhas, mostrar aos selvagens que existe vida além da mediocridade. E novamente recaímos nas sutilezas do riso. O ridículo de todas estas situações mostra que a falta de autenticidade e de respeito a si próprio são fatores determinantes à condição do oprimido. Esta sociedade encurralada é que sobressai em cada um dos contos.

Neste ponto Ricardo Ramos envereda por um universo com o qual tinha intensa intimidade: o consumismo. Sua condição de publicitário o fazia ver o mundo com olhos preocupados. O crescente distanciamento entre a essência espiritual e a condição das aparências que ele insiste em mostrar não pode ser lido como um protesto vazio. O contista tinha consciência da força de sua obra e sabia como registrar, expondo ao ridículo, cada passo desta falsa evolução. Como no antigo samba de Lupicínio Rodrigues, todos seguem para o inferno em busca de luz, que de fato é baça.

Formas inovadoras
A síntese de um país, enfim, é o que Ricardo nos mostra, e nela coloca um povo unificado pela perplexidade e a impossibilidade de reação diante de fatos incontestes. Um dos contos, Modelo 19, é todo escrito neste clima de aparente desordem, mas de fato retrata este homem novo e perdido em suas esperanças e condições. “Eu, Irineu de Paula e Silva, nortista, gaúcho, mineiro, me declaro paulista para o que der e vier.” Este Irineu, como todos os outros seus semelhantes, tem necessidade de se inserir na nova vida, mas não consegue se livrar da carga de tradição que traz na cabeça e no peito.

Este estranho exílio é descrito de maneira lírica e dolorida num dos mais belos contos do livro, Asa-branca, no qual um homem, Severino, na madrugada de uma grande cidade, escuta no rádio um Caetano Veloso cantar, do exílio, o baião de Luiz Gonzaga como uma despedida ou um abraço à solidão imposta. Isso o abate, pois se vê como espelho do outro. É a dolorida situação que o deprime, que o entrega de vez à condição de inadaptado, de permanente estrangeiro.

O mergulho neste tempo que se anuncia torna a violência gratuita, ainda tímida, uma recorrência no texto. Coluna sem assinatura é o conto onde melhor ela aparece, mas ainda cercada pela ingenuidade que marcava, de certa forma, uma marginalização tímida, sem as determinantes da crueldade. Ou seja, já ali se anunciava onde iriam cair todos os esforços da urbanização impensada.

A modernidade inventiva explode na seqüência, com cinco textos inquietantemente inovadores. Todos tirados do cotidiano, de situações corriqueiras, são contados de maneira requintada. No primeiro deles, basta listar objetos para que o leitor visualize todas as situações vividas. “Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha.” Assim, vai dando ao leitor o direito de imaginar todos os aprisionamentos de um homem que vive a intensidade de sua rotina. Brilhante e até hoje inovador.

Uma linguagem forte, um texto elegantemente irretocável, um escritor por excelência.

Circuito fechado
Ricardo Ramos
Globo
152 págs.
Ricardo Ramos
Nasceu em Palmeira dos Índios (AL) em 1929. Além de escritor, foi jornalista, publicitário e professor universitário. Estreou na literatura em 1954 com o volume de contos Tempo de espera. Publicou, entre outros, Terno de reis, Toada para surdos e O sobrevivente. Faleceu em São Paulo em 1992, aos 63 anos.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho