A obra do jornalista e escritor é, certamente, mais conhecida e louvada pela sua trajetória como biógrafo fundamental da Bossa Nova, de Nelson Rodrigues, do Mané Garrincha e, mais recentemente, de Carmen Miranda. Todos os livros citados, como escreveu certa feita o também jornalista e biógrafo Daniel Piza, mudaram a forma de se fazer biografias no Brasil. Entre outras características, Ruy Castro acrescentou àquele gênero a humanização da personagem retratada, retirando-a (o) de um pedestal e despindo da imagem que o senso comum costuma cristalizar de certas figuras. Ao mesmo tempo, o escritor deu ao texto um tratamento digno de nota em um país cujas letras são, cada vez mais, maltratadas pela imprensa. Por tudo isso, Ruy Castro é um biógrafo já consagrado. E o que se espera de autores consagrados? Que não assumam riscos. Pois foi exatamente isso que Ruy Castro fez em Era no tempo do rei — um romance da chegada da Corte. Nesse romance histórico, o escritor supera o biógrafo, muito embora as características deste estejam presentes na prosa daquele. Em síntese, temos o autor no auge da forma num livro saboroso que revisita de maneira cômica e divertida o período da chegada da Corte portuguesa em terras brasileiras há 200 anos.
A comemoração, aliás, já começou. Desde o fim do ano passado, colóquios, ensaios, teses têm, de certa forma, sacudido a agenda das efemérides oficiais de 2008. É correto afirmar, aliás, que o bicentenário da chegada de D. João VI no Brasil só foi superado pelos 500 anos do Descobrimento, que, certamente, poucos se lembrarão hoje. Entretanto, também é bom lembrar que naquela época, mais precisamente há oito anos, não houve um romance para comemorar os 500 anos, para além de uma ou outra produção audiovisual e das exposições nos museus do País. Agora, a agenda de comemoração inclui desde especial na televisão, exibido pela GloboNews, e um livro que narra os acontecimentos em detalhe, o best-seller 1808, do jornalista Laurentino Gomes. Produzidos ainda em 2007, muitos concluíram, não sem razão, que havia se chegado a um limite no que se refere aos lançamentos — posto que até as cartas de Carlota Joaquina já tinham sido publicadas. Era no tempo do rei “frustrou” essa expectativa ao trazer uma trama bastante curiosa tendo a história do Brasil como pano de fundo e como protagonistas Leonardo, diretamente das Memórias de um sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, e D. Pedro I, o príncipe herdeiro do trono real.
A história se passa pouco tempo depois que a Corte se instala no Rio de Janeiro. Ruy Castro, nesse ponto, situa o leitor com um panorama histórico a um só tempo fiel à pesquisa documental — livros e documentos de época — e também com uma narrativa saborosa, que muito lembra o humor original e único dos seus textos. Assim, ao mesmo tempo em que o leitor acompanha as travessuras de um D. Pedro do “cu riscado” segue as tramas de Carlota Joaquina para obter mais poder, sem mencionar as traições, as intrigas palacianas e um Brasil que ainda não se forjara como nação sob um calor insuportável. Aqui, o autor deleita-se em descrever não só os cenários do seu Rio de Janeiro querido, mas também em contar minuciosamente como as principais ruas da cidade serviram de palco para dois moleques travessos às voltas com um sem número de picaretas e golpistas na capital da Corte. Em síntese, a história mostra como as travessuras dos garotos foram fundamentais para a estabilidade daqueles primeiros anos.
A propósito, cumpre mencionar o fato de que Ruy Castro constrói, além de uma narrativa bem articulada, um Rio de Janeiro ideal, existente, de fato, somente no âmbito da ficção. O estilo do escritor é eficaz não apenas em provocar risos, mas também em edulcorar uma cidade que desde aquela época é uma espécie de Visão do Paraíso tanto para brasileiros como, sobretudo, para estrangeiros. Outro elemento fundamental neste romance é a presença de um personagem de outra obra, mais precisamente o Leonardo das Memórias de um sargento de Milícias. A escolha, como se lê, não foi à toa. O garoto é a dupla certa para as artimanhas do príncipe, que, por sua vez, reconhece em Leonardo o parceiro ideal para todos os seus planos, a despeito das diferenças patentes de um e outro, conforme se lê a seguir:
Pedro e Leonardo, vindos à luz no mesmo mês e ano, outubro de 1798 — Leonardo, apenas alguns dias mais velho —, não podiam ser mais diferentes nas origens. Pedro nascera no palácio de verão da Família Real, em Queluz, perto de Lisboa, num quarto com parquet em mosaico, colunas espelhadas do chão ao teto e paredes decoradas com quadros a óleo inspiradas em Don Quixote. Nas paredes do quarto do bebê Leonardo, na rua Gamboa, no Rio, as únicas imagens notáveis eram as infiltrações de água entre as pedras das paredes — grandes manchas úmidas na argamassa de pó-de-peixe. Ao vir ao mundo, o príncipe Pedro foi logo enrolado em panos finos, mornos e cheirosos. O menino Leonardo foi deixado pelado sobre o catre e, como estava, continuou pelos anos seguintes.
Era no tempo do rei, de Ruy Castro, definitivamente, não é a melhor forma de conhecer, historicamente, a importância da presença da Corte no Rio de Janeiro para o Brasil e para a História mundial. Para tanto, muitas foram as obras publicadas, como O Império à deriva, do jornalista Patrick Wilcken, ou até mesmo D. João VI no Brasil, assinado pelo historiador Oliveira Lima, para além, é claro, dos inúmeros artigos, teses, revistas e publicações que ensaiam uma reflexão do período. Entretanto, não há dúvida de que o romance de Ruy Castro está entre os livros mais divertidos já escritos sobre o período. E o leitor, de quebra, vai ficar com saudade de um tempo que não viveu.