Detox literário

"A violência gentil", de Daniel Longhi, é um romance de estilo carregado e testa o tempo todo a paciência do leitor
Daniel Longhi, autor de “A violência gentil”
01/07/2025

“A violência gentil do homem de família, acreditar que é ele a maior vítima do mal que causa” — a frase é de Tereza, ex-mulher de Augusto Weberbauer, protagonista do romance de Daniel Longhi. A frase remete à crise do homem na idade do lobo: a frustração com o casamento, a traição conjugal, o divórcio. No início da narrativa, separado da mulher, afastado do filho adulto, Augusto mora na casa que herdou da mãe, morta num incêndio. Ali também funciona o escritório de advocacia que ela fundou, e onde o filho ainda trabalha. Augusto sobrevive dos despojos da mãe, e circula pelo imóvel “como um espectro”: trabalha, dorme e lembra. Ganha pouco, e tem como único amigo Otávio Bustamante, companheiro desde a faculdade. Augusto e Otávio são dois homens de cinquenta anos, desiludidos quanto ao passado e ao futuro. Otávio, cínico, orgulha-se dessa falta de ilusões. Augusto, ao contrário, sofre.

Augusto é advogado trabalhista. Exerce a profissão sem paixão. As demandas dos clientes muitas vezes são fúteis, até absurdas. Algumas, justas, têm fraca perspectiva de receberem sentença favorável. Para o advogado, é indiferente. São “palavras registradas no papel”, “histórias dos outros”.

O enredo é armado com as curvas tradicionais da jornada do herói. Há um chamado à aventura, quando a cliente Edna Montesquina pede que Augusto recupere a documentação de um processo antigo, conduzido pela mãe, Judite Weberbauer. O processo poderia trazer uma indenização de milhões de reais, mas Augusto vacila. Não quer mexer na papelada antiga. Há muitas mágoas na relação mãe e filho, e ele prefere esquecer. A primeira virada é motivada pelo filho Theo. Afetivo, talentoso, o jovem quer fazer um curso de fotografia em Berlim. É caro, e o advogado não teria dinheiro para ajudar, mesmo se fosse um pai presente (que não é). Augusto, finalmente, toma uma decisão. Irá aceitar o caso de Edna, buscar o que a mãe deixou trancado num depósito. Nessa jornada, descobrirá a raiz de seu próprio trauma. Haverá uma ressurreição, e o retorno com o elixir.

O passado transtornado da família se desenha na década de 1970, nos anos de chumbo da ditadura militar. História social e privada se misturam nos atos de violência. Na geração anterior, havia o nazismo. Já outra família, de origem japonesa, foi marcada pela violência do Shindo Renmei, sociedade secreta que surgiu na Segunda Guerra Mundial. O cenário soa um tanto artificial, uma colagem dos piores momentos da história recente, já retratados em novelas e best-sellers.

Também a cidade de São Paulo, onde os personagens transitam, parece um pot-pourri: os bairros da Mooca, Santana, Lapa e Jardins; as ruas da Consolação, Glicério e Barão de Itapetininga; a praça da República. Há um catálogo de imigrantes: italiano, japonês, alemão, armênio. A exceção é Tereza, que veio do Recife. Um mundo de classe média, sem periferia, mas com racismo. Este é parcialmente responsável pela desintegração da família.

Estilo
Cachorros galopantes, crianças sobre patinetes, vendedores empurrando seus carrinhos, jovens adultos trotando em roupas de poliamida. Tudo isso compunha a nuvem de elétrons que zumbia ao redor da massa, atômica e inchada, de Augusto. Uma partícula morosa, viajando retilínea com São Paulo por testemunha.

As linhas acima descrevem uma caminhada do protagonista pelo viaduto Minhocão (passeio famoso na cidade, aos domingos, quando a via é fechada para carros). O trecho é um bom exemplo do estilo carregado do romance, que atribui imagens e significados à matéria narrada, saturando as páginas e testando a paciência do leitor. “Nuvem de elétrons”, massa atômica e inchada. Tudo isso para dizer que Augusto, gordo, caminhava devagar sobre o viaduto. Vejamos outros exemplos:

As memórias lhe gritavam da praia, gesticulavam distantes, e do seu barco ele ouvia apenas as palavras recortadas.

Note-se: os personagens estão num apartamento, o barco é uma metáfora.

Augusto emborcou a taça. Estava bebaço. À sua frente, as cinco garrafas enfileiradas pareciam a produção de um concerto experimental, na espera apenas do artista para começar.
[…]

Um lampejo de dor partiu do seu braço como gente fugindo de um arrastão, espalhada pelos becos e abrigos do seu corpo.

Não basta dizer que o personagem levou uma facada e sentiu dor. Cria-se uma figura de estilo. O texto é repleto desses efeitos, que pretendem, talvez, torná-lo “literário”, no sentido pomposo do adjetivo. A escrita, cansativa, torna-se uma barreira para a leitura.

Trata-se do primeiro romance do autor, e 240 pessoas contribuíram para a publicação, em pré-venda. Talvez ele encontre seu caminho nesse estilo. Alguns concursos literários valorizam um tom mais empolado. É possível que certos leitores se sintam inteligentes, e divirtam-se ao decifrar tantas figuras de expressão. O meio literário é vasto.

Ainda assim, deixo uma sugestão, baseada em uma cena de crise do protagonista:

Ele precisava comer mais fruta.
Ele precisava frequentar a feira.
Ele precisava comprar um tênis de corrida.
Ele precisava promover uma série de pequenas adaptações que levariam a uma vida adequada e saudável e feliz.

Assim como o advogado Augusto, a prosa deste romance tem sobrepeso. Um detox poderia ajudar.

A violência gentil
Daniel Longhi
Cachalote
352 págs
Daniel Longhi
Foi criado em Recife (PE) e hoje vive em São Paulo (SP). É servidor público federal e mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Chicago. A violência gentil é seu primeiro romance.
Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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