Desvendando enigmas

Temática da arte guia a busca de Fernando Echevarría por novas possibilidades líricas e sentidos do real
Fernando Echevarría, autor de “Uso de penumbra”
01/07/2012

Fernando Echevarría é um autor cuja trajetória denota um percurso singular. Nascido em Cabezón de la Sal, na comunidade autônoma da Cantábria, estudou, em seu período formativo, em Portugal e Espanha; em 1961, exilou-se em Paris, partindo posteriormente para Argel. Nos horizontes percorridos e nas terras habitadas, Echevarría colheu os elementos que, integrados a partir de sua experiência do mundo, reelaborou no âmbito de uma estética de raízes ibéricas, em que a tarefa de (re)construção literária do concreto se realiza de modo primoroso. A matriz filosófica transparece nos títulos de seus livros, como Introdução à filosofia (1981) e Fenomenologia (1984); há nisso o índice de uma obra composta sem concessão a contingências, derivação necessária de um persistente esforço reflexivo elaborador de uma poética que busca, insistentemente, o desvelamento dos sentidos do real. Echevarría cultiva a lucidez como uma mediação necessária, concebendo-a como o recurso possível para a compreensão dos enigmas da existência.

Uso de penumbra, publicado pela Escrituras na coleção Ponte velha, veio originalmente à luz em 1995, mesmo ano em que foi contemplado com o Prêmio Complementar Eça de Queirós da Câmara Municipal de Lisboa. Na edição brasileira, inclui um instigante ensaio de Maria João Reynaud — versão modificada de um estudo incluído em seu livro Fernando Echevarría — Enigma e transparência (Porto: Caixotim, 2001) —, pinturas do artista plástico baiano Zé da Rocha e o registro de um diálogo com Floriano Martins que ilumina aspectos essenciais da poética de Echevarría. Poeta “é aquele que faz”, afirma o escritor, oferecendo uma definição de cariz etimológico mais densa do que pode parecer a princípio: o que faz, afinal, o poeta? Talvez seja possível dizer: o poeta faz a si mesmo, num ato em que constitui um mundo que já não é apenas o seu. Por outro lado, se é esse um processo inevitavelmente solitário, pressupõe uma relação dialógica com outros que se dedicaram à mesma tarefa: o poeta consciente de seu ofício é partícipe de uma História que desde sempre acompanha a humanidade, na medida em que esta se dedica a explorar o espanto perante o real que habita.

Esse diálogo, que subjaz a toda a obra de Echevarría, emerge de modo patente em Uso de penumbra, no qual a voz poética se constrói em densa relação com outras modalidades artísticas; e essa construção deve ser compreendida como um aspecto fundamental do livro, uma vez que implica uma reelaboração da dimensão estética da própria linguagem. Isso significa, em outras palavras, que Echevarría não se limita a referir-se à arte — seja a pintura, a escultura ou a dança. Em vez disso, forja novas formas de dizer que, enquanto derivações da linguagem poética, encontram na arte motivos que ensejam atos reflexivos acerca do mundo. Ressalta Maria João Reynaud: “cada poema é o resultado de uma comunicação profunda e misteriosa com os referentes estéticos que constituem o seu suporte visual, um conjunto de objectos culturais cercados de uma aura que os torna a priori atraentes, independentemente da relação de fruição que o sujeito poético possa com eles estabelecer e que é, aqui, absolutizada”. A arte é tomada, portanto, não como objeto de uma contemplação particular, mas como produto do trabalho humano que, por essa condição, tem já estabelecido seu inestimável valor; e é nesse nível que se estabelece a relação dialética entre o poeta e a(s) obra(s) que tematiza em seus escritos.

Variações
Na “penumbra” constante do título da obra há uma evidente alusão ao chiaroscuro pictórico; contudo, já aqui se pode perceber como Echevarría opera uma reelaboração do elemento extra-literário a partir de sua proposta poética. Afirma a primeira estrofe do poema intitulado, precisamente, Uso de penumbra: “O espírito começa onde a penumbra/ se desentranha do fundo/ do objecto. E acentua/ seu pressentimento em curso./ Dir-se-ia desprendida da vetusta/ escuridão. De que tudo/ toma substância. E se individua/ na original saudade do seu lustro”. Por conseguinte, o que na pintura pode servir à sugestão do volume ou à dramaticidade dos contrastes, na obra poética tem um sentido fundamentalmente cognitivo: trata-se do processo de emergência do objeto perceptivo inerente à constituição do espírito, que simultaneamente institui a si mesmo; por outro lado, disso deriva a poesia, como testemunha de cada etapa deste movimento. Se a penumbra “sustenta/ o momento em que a obra pára o mundo”, como afirma a estância final, é porque representa o jogo de contrastes que condiciona a formação da consciência.

Não menos interessante é perceber o diferente tratamento concedido às diversas modalidades artísticas, algo patente no índice do volume: obras plásticas comparecem de modo particularizado — vejam-se títulos como Última visão, de Rodin; Auto-retrato de Rembrandt, ou Retrato de La Marquesa de la Solana, de Goya —, ao passo que outros poemas tratam de modo totalizante a Dança ou a Música (isso embora tenhamos um conjunto de poemas denominados Repentirs, nome técnico conservado pelo próprio poeta que, em nota, afirma não haver encontrado palavra portuguesa que traduzisse o termo francês para “obra plástica que o artista resolveu não terminar”). Nada disso é acidental: temos, de fato, tratamentos diversos sobre as artes que podem ser apreendidas de uma só vez pelo olhar e sobre aquelas que se efetivam na duração. No caso das primeiras, opta o poeta por tematizar a obra acabada, de uma só vez oferecida à percepção, debruçando-se sobre as diferentes etapas de sua fruição; no caso das últimas, o que vem à tona é a tentativa de compreender o processo de desenvolvimento da obra. “E, então, a Madalena perpetua/ a dolorosa contenção do pranto/ reclinado somente sobre a curva/ do sacramento. Enquanto/ João destrinça na coroa dupla/ o místico sentido. E o arcano/ do peso da cabeça que deslumbra/ a discrição da sua mão por baixo”, lemos em toda uma estrofe de La Pietà d’Avignon, registro de um olhar que percorre a obra, rastreando leituras; já em Três movimentos, obra da seção Música, o foco é a reflexão subjetiva ensejada por uma melodia não nomeada: “Essa pátria que, ao fundo de nós mesmos,/ o de onde vimos abre a irmos indo,/ inunda-nos de paz. E o pensamento/ diáfano se encontra de sentido”.

Cabe enfatizar, no entanto, que não há nessa estruturação nada de rígido, como podem fazer supor minhas considerações; a bem da verdade, Fernando Echevarría repensa a cada verso a sua escrita, reajustando o olhar e o discurso em busca de novas possibilidades líricas. Talvez haja nisso alguma herança biográfica, resquícios do homem que habitou muitas terras; talvez isso derive de seus múltiplos percursos intelectuais. De todo modo, o mais importante é perceber o papel crucial que essa variação desempenha na construção de uma poesia essencialmente comprometida com a compreensão da beleza, essa perene luz que guia o homem em meio às trevas que o rodeiam.

Uso de penumbra
Fernando Echevarría
Escrituras
176 págs.
Fernando Echevarría
Nasceu em 1929. Cursou humanidades em Portugal, Filosofia e Teologia em Espanha. Exilado em Paris desde 1961, partiu para Argel em 1963, regressando àquela cidade em meados de 1966. Contemplado com diversos prêmios, presente em mais de uma dezena de antologias, tem publicadas várias obras poéticas, entre elas: Entre dois anjos (1956), Tréguas para o amor (1958), Sobre as horas (1963), Fenomenologia (1984), Sobre os mortos (1991) e Introdução à poesia (2001).
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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