Desvelando desvios

Resenha do livro "Perversos, amantes e outros trágicos", de Eliane Robert Moraes
Eliane Robert Moraes, autora de “Perversos, amantes e outros trágicos”
01/01/2014

A produção bibliográfica de Eliane Robert Moraes é incontornável para quem se dedica a pesquisas que abordem a literatura adjetivada como erótica ou pornográfica — categorias invariavelmente imprecisas e deslizantes, sempre evocadas a partir de instáveis critérios ancorados em perspectivas morais. Com efeito, trata-se de uma pesquisadora envolvida com o tema desde a segunda metade da década de 1980, quando optou por mergulhar nas revoltas águas da literatura do Marquês de Sade, cuja turbidez jamais deixou de perturbar quem nela imergiu em busca da nitidez e da claridade iluministas. Da investigação que realizou ao longo do mestrado nasceu a dissertação posteriormente publicada em livro, logo alçado ao lugar de referência obrigatória: Sade — a felicidade libertina (Imago, 1994). Nos anos seguintes, Eliane Robert Moraes continuaria a percorrer os subterrâneos caminhos dos quais muitos preferem manter distância: assinou textos de apresentação para obras “malditas” de autores como Guillaume Apollinaire e Pierre Louÿs; pensou a desfiguração da figura humana desde o final do século 19 até as primeiras décadas do século 20, a partir de autores da estirpe de Lautréamont, Hoffmann e Bataille, numa tese de doutoramento também publicada em livro — O corpo impossível, já na segunda edição (Iluminuras, 2012) —; e continuou a investigar a obra do autor de A filosofia na alcova, reunindo seus escritos em um segundo livro sobre a literatura sadeana: Lições de Sade — Ensaios sobre a imaginação libertina (Iluminuras, 2006).

Todavia, se pensar os desejos e os corpos que rechaçam os parâmetros convencionais é já uma tarefa que impõe a necessidade de percorrer sendas que podem conduzir a terras demasiado longínquas, Eliane Robert Moraes não recusou a contígua tarefa que essa proposta reflexiva lhe impunha, a saber: o desafio de pensar o próprio desvio; ou, mais ainda: de enfrentar o desvio como um modo de pensar — “talvez o modo de pensar por excelência da literatura”, em suas palavras. E já o título do livro que agora vem a lume revela a seriedade com a qual a pesquisadora encarou essa tarefa, cumprida não apenas no âmbito acadêmico, mas também em textos veiculados em jornais e revistas de mais ampla circulação. De fato, Perversos, amantes e outros trágicos atesta as qualidades de um trabalho pertinaz e constante, reunindo mais de duas dezenas de artigos, publicados ao longo de cerca de duas décadas. Correndo os olhos pelo índice, deparamo-nos com uma espantosa heterogeneidade: ali figuram os nomes de autores das mais diversas épocas e nacionalidades — do Marquês de Sade a Vladimir Nabokov; de Stendhal a Octavio Paz; de Juana Inés de la Cruz a Henry James; de Goethe a André Breton. Provenientes de nações e gerações diversas, todos esses autores surgem, no entanto, como membros de uma mesma família quando confrontados por aquele pensamento que neles divisa uma disposição marcada pela intensidade para interrogar o desvio. Uma família, diga-se de passagem, à qual vários desses nomes provavelmente não reconheceriam pertencer.

Novos questionamentos
Perceber os rumos do desvio demanda um olhar apurado, capaz de acompanhá-lo por caminhos nem sempre facilmente discerníveis; e a capacidade de rechaçar os limites convencionalmente impostos é o que faculta a Eliane Robert Moraes sugerir parentescos textuais que poderiam, à primeira vista, parecer despropositados — mas que, se nos abrimos à sua proposta de perscrutar brechas e bordas, revelam-se instigantes. Um dos exemplos mais notáveis disso é, porventura, sua reflexão sobre os mitos eróticos indígenas compilados pela antropóloga Betty Mindlin na antologia Moqueca de maridos (Record, 1997). Narradores indígenas de seis povos de Rondônia — os Macurap, os Tupari, os Aruá, os Arukapu, os Ajuro e os Jabuti — facultaram a Mindlin o acesso a narrativas em que se fazem presentes “assassinatos, massacres, torturas, estupros e toda sorte de mutilações corporais”, destacando-se “em particular as várias modalidades de antropofagia”. Comer e copular são atos que de várias formas se mesclam, seja no mito Tupari que descreve aquele que “enquanto namorava ia comendo a mocinha”, seja no mito Jabuti que “amplia o campo do erotismo oral ao relatar a história coprofágica dos homens que se escondiam para comer as próprias fezes misturadas com pamonha”; e a autora de Perversos, amantes e outros trágicos ressalta como assim se estabelece uma relação entre o alto e o baixo corporal que se faz presente como tópica literária na tradição européia, manifestando-se no corpo grotesco tematizado por Rabelais, no mundo libertino figurado pelo Marquês de Sade e na obra de Georges Bataille.

A propensão ao excesso que enseja a confluência entre violência e desejo comparece também na leitura da incursão de Apollinaire pelo romance libertino em As onze mil varas, ali potencializada “pelo fato de a narrativa desenvolver-se quase toda numa atmosfera de guerra” e materializada numa escrita que incorpora elementos vanguardistas e se orienta por uma “simbólica da destruição”, como observa Eliane Robert Moraes; em sentido não muito distante, pode-se evocar a força entrópica da perversão de Humbert Humbert, o pedófilo incapaz de libertar-se da própria infância — conquanto coubesse indagar em que medida Lolita não é arrastada para a mesma prisão, algo obscurecido pelo fato de a obra de Nabokov encerrar um discurso confessional. A propósito, a mudança de tom da narrativa, “que passa de crônica de uma perversão a uma autêntica história de amor”, não estaria intrinsecamente relacionada ao fato de ser o próprio H. H. o autor desse relato que, ao fim, trata de um desejo por ele mesmo reconhecido como desviante?

Embora os textos compilados em Perversos, amantes e outros trágicos sejam, na maior parte, curtos, isso em nada compromete sua densidade — de fato, ocorre o contrário: sua autora sabe valer-se proveitosamente da concisão para suscitar questionamentos capazes de abalar certezas e propor novas interpretações para obras já muito lidas e estudadas; abordando os textos pelas tangentes, logra deslocá-los dos campos de visão convencionais, atentando para aspectos que anteriormente permaneciam invisíveis e que, uma vez desvelados, facultam inusitadas aproximações e abordagens. Nada melhor para demonstrar que, enquanto o desvio for possível, nenhuma leitura será definitiva.

Perversos, amantes e outros trágicos
Eliane Robert Moraes
Iluminuras
216 págs.
Eliane Robert Moraes
É professora de Literatura Brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP), onde se graduou em Ciências Sociais e defendeu mestrado e doutorado em Filosofia. Foi professora titular da Faculdade de Comunicação e Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e também atuou como professora e pesquisadora visitante em diversas universidades estrangeiras.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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