Destino traçado

Em “A última escala do velho cargueiro”, o colombiano Álvaro Mutis viaja pelas forças do destino
Álvaro Mutis, autor de “A última escala do velho cargueiro”
01/01/2005

Não são poucas as pessoas que atribuem poderes místicos a determinados eventos em suas vidas. Ainda hoje uma grande parte da humanidade guarda os céus para tentar inferir acontecimentos, buscando descobrir como será o seu destino. A conjunção de estrelas, planetas e outros corpos celestes traria o destino (um destino possível dentre infinitos, o mais provável?) escrito, e com ele a certeza de alegrias ou desgraças. O céu é o preferido, basta ver os incontáveis astrólogos e oráculos que usam as estrelas para dizer como você é, e o que deve fazer. Os antigos (e nem tão antigos assim) usavam também outras técnicas. Entranhas de bichos, os vôos dos pássaros, os ventos, borras de café, cinzas, enfim, os métodos são também incontáveis.

Por que as pessoas não usam objetos mais prosaicos? Uma vez li um cientista menosprezando a astrologia, falando que os jumbos 747 espalhados pelo mundo também poderiam ser utilizados para prever o futuro. Isso porque as estrelas, pela distância, exercem uma atração sobre a pessoa que nasce muito menor que a da equipe médica presente ao parto. E se fosse pela posição das estrelas, por que não pela posição dos jumbos? “No momento de seu nascimento, o 747 da JAL estava em Paris, o da American Airlines em Tóquio, mas cuidado!, o do Lloyd Aereo Boliviano estava na sua cidade!! Viagens arriscadas no futuro!” E por aí vamos.

Álvaro Mutis, escritor colombiano radicado no México, despreza todos os outros sinais possíveis e escolhe um velho navio cargueiro para marcar e definir o destino de Jon Iturri, o protagonista de sua novela A última escala do velho cargueiro (La última escala del tramp steamer). Ah, é claro, não apenas um navio, mas também uma mulher belíssima, única, apaixonante à primeira vista, serve para marcar o destino do marinheiro Iturri pelo mundo.

Jon Iturri é um marinheiro basco, com cerca de cinqüenta anos, respeitado no mundo da navegação, que recebe uma proposta de emprego um tanto quanto arriscada: ser o capitão e sócio de um navio cargueiro antigo, o Alción. A expressão tramp steamer, em linguagem náutica, quer dizer um navio sem rotas fixas, que vai de porto a porto procurando cargas quaisquer para transportar.

Em um dicionário visual, aqueles em que uma foto é associada a uma palavra, o Alción poderia estar nos verbetes decadente e decrépito, sem riscos de errar. No entanto, enquanto o navio parece flutuar por milagre e capricho de Netuno, sua dona entra no verbete belíssima (sim, no superlativo). Warda, uma libanesa de 24 anos, deseja um sócio que toque o navio, pois quer, com a renda do negócio, viver uma experiência de vida européia ocidental. Cansada da cultura muçulmana, ela deseja experimentar outros gostos, outras sensações. E o faz com consentimento não tanto explícito de seus irmãos. E assim, sem razão, Iturri torna-se sócio do Alción.

A história não é narrada pelo marinheiro basco, mas por uma outra pessoa, um jornalista, que por acaso (ou não) encontra o Alción em quatro diferentes situações ao longo de sua vida, em todas elas de uma maneira quase surreal. Em um dia altamente frio em Helsinque, no calor extremo do Caribe, prestes a aterrissar por causa de pane na Jamaica e na entrada de um porto na foz do Orinoco, o narrador aprecia a decadência e obstinação do velho cargueiro, que visualmente não dá a impressão de ter condições de chegar a lugar algum. Mas que chega. As visões do navio atormentam o narrador, e passam a fazer parte freqüente de seus sonhos. Ele sabe que o navio é real, mas devido às circunstâncias e aos locais onde eles se encontram, toma dimensões oníricas, quase surreais. Não há uma história passível de ser imaginada pelo narrador.

A história se revela, porém, quando o narrador encontra Jon Iturri, em uma viagem de trabalho ao longo de um rio navegável de um país não determinado. Durante a viagem, Iturri e o narrador têm a chance de descobrir o elo que os liga — o Alción — e o narrador tem a chance de descobrir o que aconteceu com o cargueiro e seu comandante, e como Warda conduziu ambos à situação em que se encontram. A ligar ambos, os encontros fortuitos do narrador com o Alción, sempre em situações decisivas para a história do marinheiro basco com a libanesa.

Iturri não teve condições de resistir às forças do destino. Foi cooptado para ser o comandante de um navio que resistia teimosamente à decadência natural provocada pelo tempo, e para ser o trampolim que faltava a Warda para completar as suas experiências, sem nunca realmente ter um pouco que fosse da vida da libanesa. Sem saber, Iturri nunca teve o controle da situação, e quando se descobriu sozinho, sem navio nem amante, morreu em vida. Seguia ele os dias na condição de zumbi, agora vagando de porto em porto, sem direção final.

No fundo, A última viagem do velho cargueiro é uma história de amor. Como diz Mutis, “os homens mudam tão pouco, continuam sendo tão eles mesmos, que só existe uma história de amor desde o princípio dos tempos, repetida ao infinito sem que se perca a sua terrível simplicidade, a sua irremediável desventura”. Iturri se apaixona, fica cego, e joga a sua vida nas mãos de outra pessoa. Quando a perde, fica desnorteado. Mas nunca arrependido. Sabia ele que aquela era uma chance única, e mesmo que o resultado final pudesse ser pressentido, ele era inevitável.

Em muitos casos, estamos relacionados mais ao cargueiro Alción que ao seu comandante. O ser humano tende a ser obstinado, teimoso até, em insistir em levar o seu esqueleto pelo mundo. Em alguns casos, carregamos um defeito sem conserto por aí, à procura de um porto que nos acolha mesmo com esse defeito aparente, talvez até incômodo. O Alción nunca estava ancorado nos cais principais dos portos, sempre em um espaço mais distante, menos visível, como se as marcas que o tempo lhe fez fossem por demais incômodas para quem as olhasse.

Mas Mutis relaciona mesmo homens com homens. Se o Alción é a metáfora do homem que vai, ao longo de sua vida, sofrendo baques e cicatrizes até o naufrágio final, estamos é no mesmo patamar que Iturri. Vítimas de paixões, cegos por amores que julgamos eternos (e mesmo sabendo-os perenes, queremo-los eternos), agimos sem pensar, jogamos todas as fichas em uma aposta quase sempre perdedora. Mas contentamo-nos com o brilho fugaz e a alegria intensa de achar que estamos ganhando o jogo, nem que seja por poucos minutos.

No início do livro, Mutis parece que nos dará um relato meio fantástico, dado o caráter mirífico das aparições do Alción para o narrador. Mas nada ali é imaginário ou irreal, ou ainda, nada é impossível de acontecer. Terminamos A última escala do velho cargueiro procurando em nossas vidas qual foi o navio que cruzou por elas nos momentos-chave, qual foi o cometa, o meteoro, o planeta, que testemunhou os encontros-chave que nos tornam homens, humanos.

A última escala do velho cargueiro
Álvaro Mutis
Trad.: Luís Carlos Cabral
Record
150 págs.
Álvaro Mutis
Nasceu em Bogotá, em 1923. Publicou seu primeiro livro, La balanza, em 1948. No segundo, Los elementos del desastre, surge a figura de Maqroll el Gaviero, personagem de boa parte de sua obra, que inclui títulos como A neve do Almirante, Ilona chega com a chuva e Poesias. Recebeu prêmios como o Médicis, da França, em 1988, Príncipe Astúrias de las Letras e o Reina Sofia de poesia, em 1977.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho