Potlatch, de Guilherme Gontijo Flores, é dividido em quatro partes, A parte da perda, Colheita estranha, Três estáticas e Cantos pra árvore florir. Após o último poema, além de uma citação de Agostinho de Hipona, há notas que situam brevemente os leitores na desorientação causada pela profusão de referências e vertigens que, com certeza, sofreram aqueles que se deixaram levar pelas línguas e os rituais de perda e de excesso da poesia de Potlatch.
Talvez até “deixar-se levar” seja um eufemismo. A leitura desses poemas exige um esforço corporal, uma atenção concentrada, uma disposição para ser irremediavelmente afetado e confrontado com o fato de que “nada no tempo garante um depois.” Ao lado do tempo, a morte, com todas as suas alegorias e todo seu imaginário, guia nossa leitura desde o poema Wega, escrito a partir de cantos funerários do povo sul-africano xona, transcritos pelo etnólogo cubano Jesús Fuentes Guerra. O último poema traz o título do livro, no qual o dom se entrega à terra e ao dispêndio, em vãos contradons dos ancestrais “cedendo tudo que ganhou,/ desfaz-se tudo, menos carne,/ como um avô vem de outro avô,/ concede até chegar no cerne”.
A lapidação no elaborar de cada verso, o cuidado com o escandir e enlevar com um ritmo próprio são marcas indeléveis desses poemas. Refiro-me novamente ao estado corporal requerido em alerta (quase agônico). Condição, no entanto, suavizada pela maestria do gesto poético de Gontijo Flores. O ritmo dos poemas parece evocar um instrumento de percussão longínquo, causando uma sensação de atrito e choque, contemplação e pacto, intensificando a experiência de transe. É como se o autor nos convocasse a uma espécie de dança ritualística primeva, como se, de fato, participássemos de uma cerimônia estranha familiar de potlatch.
As orelhas do livro apresentam um brevíssimo comentário sobre o significado do título. Ainda assim, considero importante discorrer um pouco mais sobre determinadas conexões que se estabelecem a partir do conceito de potlatch. Trata-se de um cerimonial identificado entre tribos indígenas norte-americanas, mas também praticado por alguns outros povos, como os melanésios e polinésios. Muito grosseiramente resumindo — porque é um conceito com infinitas ambiguidades e complexidades de saberes antropológicos, etnológicos, sociológicos e filosóficos —, o ritual consiste em práticas comerciais que culminam em batalhas nas quais o suposto representante da tribo vencedora dilapida sua riqueza, e pode chegar à destruição dos bens acumulados, para humilhar seu adversário. Esta prestação essencialmente usurária de dispêndio dos bens teria como “contrapartida” apenas uma suposta glória, um prestígio ou honra, em suma, uma autoridade. Marcel Mauss, antropólogo e sociólogo francês, foi o primeiro a aprofundar os estudos sobre esse Sistema de prestações totais de tipo agonístico, no livro Ensaio sobre o dom ou Ensaio sobre a dádiva, publicado em 1925. Segundo ele, a dádiva da riqueza exigiria sempre a obrigação absoluta de retribuição, sob pena de se perder o “mana” conferido pela dádiva, sendo a fonte dessa riqueza ou “mana”, a própria autoridade. Dá-se então uma intrincada relação de trocas de dádivas em retribuições, dilapidação e destruição (incluindo assassínios de escravos e animais) que parece não ter fim.
Escoar o excesso
Continuando no desvio, trago outro estudioso do assunto: Georges Bataille, alguém com muito mais proximidade de uma leitura do potlatch que nos conecta à literatura e ao Potlatch de Gontijo Flores. Segundo Bataille, a instituição tão estranha — e no entanto, tão familiar — desse sistema contratual de trocas de dádivas, pode ser encontrada em várias de nossas condutas nos tempos contemporâneos. O problema colocado por Bataille é o do dispêndio do excedente de energia na Terra, que supera os limites da utilidade prática da vida no planeta. Por isso, devemos dar, perder ou destruir, para dar conta de escoar o excesso. Mas não é tão simples quanto parece. É preciso que o gesto de dar reverta em poder. “A riqueza efetuada no potlatch — no consumo por outrem — só tem existência de fato na medida em que o outro é modificado pelo consumo.” A glória obtida por dar e destruir é expressa na despesa de energia sem medida e alcançada desde que atinja o outro (sendo, no âmbito literário, possivelmente representado pelo público leitor, mercado editorial e/ou sistema político-cultural).
E o que isso tem a ver com poesia? Ainda conforme o autor de A parte maldita, o que chamamos de poesia, de profundidade ou de paixão é essa sombra inapreensível, essa riqueza que entregamos à destruição. Uma dádiva sem contrapartida, sem contradom, a não ser nossa finitude e a dilapidação de nossa riqueza (diga-se, a poesia ou o corpo) em troca de uma suposta (e patética) glória. E conforme Bataille, “depois de toda contradição e ambiguidade, dos usos da energia excedente pelos ricos, da derrisão e das mentiras”.
Na contracapa da primeira edição de Amavisse (1989), Hilda Hilst aparece em uma foto com o editor Massao Ohno, e logo abaixo, seu poema que deixa clara a afinidade com Georges Bataille, também proclamada em outras ocasiões. Os versos da segunda estrofe do poema anunciam a despedida da “literatura séria” e inauguram “as adoráveis bandalheiras” que têm início com O caderno rosa de Lori Lamby (1990). O escritor, “colado à própria sombra” vem dizer adeus: “Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar/ A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo./ O Caderno Rosa é apenas resíduo de um ‘Potlatch’./ E hoje, repetindo Bataille:/ ‘Sinto-me livre para fracassar’”. O resíduo do potlatch de Guilherme Gontigo Flores, com a publicação deste livro de poemas, é a perda sem contrapartida, um dispêndio de criação, camadas e camadas de histórias, de línguas, de corpos e de palavras que se avolumam formando ruínas, ossamas, tumbas e dentes soltos.
Terceira metade
Dar por perdido
o perdido, dar
por perdido, né?
et quod uides
perisse perditum
ducas, por perdido,
dar por perdido
chaves, dedos,
dias, viço, chances,
isn’t hard to master
é? dar por perdido,
the art of losing,
contas, corpos,
perdido, amores,
dar por cansaço
perdido tudo
em tudo que
se perde é sim
metade da arte,
o mais difícil.
Ao miserável
O autor de O erotismo afirma que a literatura é o mal e — trazendo-nos um panteão de autores representantes desse mal, como Jean Genet, Kafka, Emily Brontë, Sade e outros — assegura que “o verdadeiro luxo e o profundo potlatch de nossa época cabem ao miserável, àquele que se estende sobre a terra e despreza”. E “[…] a mentira (dos ricos) destina a exuberância da vida à revolta — o esplendor dos farrapos e o obscuro desafio da indiferença”. O poeta cínico expõe a miserável glória de se saber preso e refém de um mundo em que a indiferença concebe queimar museus, permite que crianças morram de fome ou em campos de concentração após o cerco às montanhas na Batalha de Kozara e que o sofrimento da doença psicossocial seja um dos tantos efeitos do colonialismo, como no poema a partir de Frantz Fanon, intitulado É supérfluo acrescentar que, aqui, não se trata de contratura histérica.
Como contradom, contrapartida da riqueza, resta-nos a colheita estranha: “[…] eis a nossa política/ de troca, contradom/ na lida dos palhaços:/ você e eu assinalados/ pelo acaso dos lados/ que cabem a cada um,/ colhendo aqui o fruto/ do golpe sobre a carne”. Valeria ainda citar Foucault quando ele discorre sobre a vida kinikós, a vida de cão que é reversão escandalosa, violenta, polêmica da vida reta, da vida que obedece à lei e que, no entanto, tem a coragem da verdade, expõe o escândalo cínico e arrisca-se expondo a própria vida na fala franca da poesia, opondo-se às leis divinas, às leis humanas e a toda forma de organização social tradicionalmente estabelecida. Mas isso se houvesse tempo aqui para o excedente e o dispêndio.
Os poemas de Potlatch nos trazem um inventário de seres impossíveis, mas plausíveis numa Pasárgada de um “só-presente de agoras sem consolo”. Os seres se multiplicam e as imagens inusitadas expelem versos. Há peixe compelido, águia mutilada, cadela de beco sem saída e há uma liturgia infinda de órgãos, vísceras, chagas, raiz, ramo, galho, ramalho, cordas umbilicais, secreções, carne, ossos, costela, asco, ilhas fantasmas que guardam beijos de carvão, museus naturais incendiados, dias excedentes, dentes, dentaduras frouxas, mandíbulas esmigalhadas num sorriso, dedos e palavras Em lascas sobre a língua: “Se adensadas em treva,/ espessas boca adentro,/ decaem em pleno peso/ feito pedras e hoje feitas/ coisas, as palavras vêm/ negar o mundo que antes apontavam, o mundo que/ fundavam a cada instante/ em nossos dedos e dentes […]”. Cabem no livro muitos nomes, antinomes e rios, poemas dentro de poemas, poemas espelhados, chamadas em código morse, vozes esquizofrênicas e ecolalias, sensualidade tensa e arisca em recíproca mordida, além de Lázaros, escapulários, batistérios, “Um deus mortal em tudo” e a certeza de que tudo termina e determina o interminável desterro nosso de cada dia.