Lidando com a estratégia literária de “papéis achados”, como fez, por exemplo, Machado de Assis em Esaú e Jacó e Memorial de Aires, Ricardo da Costa Aguiar escolheu um narrador em primeira pessoa (Diogo Vaz Aguiar), cujas memórias, manuscritas numa prisão do século 17, foram encontradas por acaso e febrilmente digitadas por um diplomata contemporâneo, alocado em Benim (antiga Costa dos Escravos), onde há tão pouco a fazer que se avizinha o tédio e a obsessão. Este narrador (externo), cujo nome de família é o mesmo do jesuíta lá enterrado (narrador interno), soma à edição das memórias do padre sua própria narrativa. Nesta, o principal eixo narrativo está na longa pesquisa genealógica sobre esse antepassado, cujo túmulo conheceu em Cotonou.
São, assim, dois protagonistas: padre Diogo, cujo trabalho de catequese o estabeleceu na Santana de Parnaíba (SP) setecentista, vila precária e suja, tomada pela passagem de entradas, bandeiras e indígenas escravizados, e o diplomata pesquisador que prestará grande reverência à história do jesuíta.
A estratégia da obra é simples, não há esforço para deslindar quem assume a voz narrativa, pois o layout do miolo registra em fontes bem diferentes as falas de um e de outro narrador. Aliás, esse layout óbvio da obra torna-se confuso, talvez equivocado, sobretudo por ter de abrigar supostos rodapés do autor que, do pé da página, migram para dentro da mancha do livro. É este um problema de certos romances históricos atuais: alguns autores fazem tantas pesquisas que precisam encontrar um lugar para explicar, traduzir, justificar-se — o que tira o vigor e a naturalidade do gênero romance.
Nesta obra, além da tarefa de absorver rodapés, as páginas têm de lidar com o amor dos narradores pelo latim, que as recheia com citações e provérbios latinos e suas inescapáveis traduções. Não creio que tais ornatos recorrentes e didáticos fizeram bem à obra: cansam o leitor, que deles foge, e diluem a tensão narrativa, já suspensa para trocar de narradores.
Identificação
O narrador externo deseja projetar-se no jesuíta português — seu avô. Suspende a própria fala sempre com dois pontos para introduzir as falas de Diogo. O autor deseja, através do cruzamento, introduzir uma voz na outra e ligar a vida de ambos. O fato é que há duas narrativas que percorrem seus próprios caminhos, o que dá no impulso de o leitor saltar páginas sem ter de alternar o narrador. A do jesuíta sustenta-se por si só. A do narrador externo, decotada das referências aos “avoengos”, contaria a simples história de uma pesquisa genealógica em meio aos bastidores do Itamaraty.
O suposto parentesco justifica todas as ações de um romance histórico — com personagens fictícios e verdadeiros. Buscar documentos, genealogia e sepulturas em vários lugares é um trabalho do diplomata quase mais eficiente do que os vários cargos que ocupa.
O brasileiro insiste na similaridade entre sua vida e a do jesuíta; mas, com biografias dessemelhantes, o que avulta à primeira vista está na libido exacerbada de ambos com mulheres e amantes. (A rigor, a paixão avassaladora do jesuíta por Bárbara não é experimentada pelo diplomata.)
São sórdidos os meandros da política do Itamaraty, hoje, ou da catequese no interior do Brasil, no século 17, em mãos da Companhia de Jesus. Com esse ponto de contato (quase universal), equipararam-se dois homens que não são nem heróis nem vítimas inocentes — cometeram seus crimes, acercaram-se de corruptos e corruptores. Diogo é devasso, é assassino, luta contra tribos inimigas e mata (com prazer) o marido de sua amante. O diplomata de carreira envolve-se em desfalques, denuncia o chefe, que odeia, tira licenças e recorre ao pai advogado para resolver muitas pendências e problemas.
Creio que, afinal, estão mal comparadas vidas e profissões em épocas diferentes. Ambos os narradores são frágeis, emotivos e assustadiços. Diogo, jesuíta, fantasiava sua vida ao lado de Bárbara; o diplomata, para nosso espanto, convence-se de que é herdeiro legítimo da fortuna de sua avó Bárbara, doada à Igreja há mais de quatro séculos. Ambos, se quisermos forçar semelhanças, padecem de falta de realismo, de certo espírito pueril. Ambos, lá e cá, terão suas Bárbaras e sua descendência.
O que resta
É fato que a existência de ambos é “minúscula”. “Quem é um homem perante o Estado?”, questiona o jesuíta. Segundo o diplomata, escavar a vida de Diogo o deixou perplexo. O leitor se pergunta, no decorrer da leitura, se são assim espelháveis as venturas e desventuras. Tem-se a sensação um pouco incômoda de que o autor se força a aproximá-los.
O grande valor comum que resta a ambos os narradores são suas memórias — a palavra escrita —, que os imortalizaria como testamento. Não se pode melhorar uma obra com interpretações, por isso sinto que autor não alcançou essa grandeza ao introduzir o texto como legado. O que fez, guardadas as diferenças, foi amenizar as dores de ambos os narradores: o diplomata desiste de acionar a Igreja, convencido pela Cúria paulista, que seria ré do processo. Porém, ganhará o belo consulado brasileiro em Roma, uma nova esposa e um filho — de nome Diogo. O jesuíta, em degredo perpétuo, transformou-se em fino comerciante na Costa dos Escravos, famoso no Reino e na África.
Ao fechar a narrativa, o diplomata dedica ao filho seu relato: “Honre a estirpe de seus velhíssimos avós (…) e enobreça a linhagem de seus netos”. Assim, o legado é compulsório.
Da tonalidade narrativa
O autor se esforça para recriar na narrativa do jesuíta a tonalidade setecentista. Não creio que tenha conseguido, infelizmente, exceto pelo uso de algum vocábulo de época na frase. Mas vocábulos são insuficientes. A sintaxe portuguesa, barroca ou de hoje, não aceita bem um gerundismo tão familiar ao português do Brasil. Em muitas passagens, o autor se esquece da inflexão adequada, e fica na prosódia brasileira contemporânea (que desloca advérbios e pronomes e abusa de tempos verbais compostos):
Eu pisava macio nas alcatifas de seda. Junto à grande janela envidraçada, coloquei meu vaso de pimentão amarelo para sentir o gosto de casa sempre que a saudade apertava. Filipa servia leite fervido com canela, deixando um rastro exótico no ar.
Por isso, o leitor se confunde e não encontra o sotaque do português com que seria interessante defrontar-se. Difícil tarefa, mas vários romances históricos brasileiros contemporâneos têm sido bem-sucedidos quanto à dicção portuguesa.
A obra cumpre, decerto, seu papel narrativo, e resta a nós escritores avaliar se foi vigorosa o suficiente para a crítica ao poder avassalador do Estado e da Igreja.