Quando Camilo José Cela foi anunciado como prêmio Nobel de literatura (1989), o jornalista Paulo Francis disse que o escritor galego (que ele alegava não conhecer), mesmo laureado — como o gaúcho Lúcio Graumann — estaria apenas “despontando para o anonimato”.
Registrei a injustiça franciscana do comentário, mas tive que rir com o tal “despontar” que Paulo aspeou, talvez porque a graça não fosse dele. Não importa. Aqui, quero apenas parafrasear a expressão, para dizer que a ficção brasileira está a caminho de despontar para a desimportância, nacional e internacionalmente, nesta idade má que ela atravessa, ouvindo o canto de sereia dos editores e buscando o leitor a qualquer preço (e talvez nem o leitor, mas o “comprador” de livros que acaso deixe alguns reais no caixa das livrarias abarrotadas de merda ficcional verde-amarela).
Este jornal literário acaba de atravessar — galhardamente — mais uma crise de sobrevivência, neste começo de ano, e dei por mim a cismar, com os botes inexistentes da camiseta : “antes que o Rascunho sofra algum novo susto etc., escreverei sobre a desimportância da atual prosinha-cocô tupiniquim, porque nenhum outro jornal irá aceitar o texto escrito com todas as letras, como eu o quero”. E é o que estou fazendo: iniciando um artigo sem medo, a começar deles, os editores que estão publicando a bosta toda, alegremente. Fernando, stop, pare aí, refaça as frases, tenha cuidado, os caras são vingativos paca — um amigo (um verdadeiro), aqui junto, poderia estar lembrando, bem intencionado e temeroso das conseqüências sobre a minha cabeça já sem muito cabelo para me proteger. Bem, falta só cabelo, não massa encefálica e, sem dúvida, eu prefiro ficar careca, escolho perder o ônibus, mas não perder a dignidade: começo, aqui, pelos editores editando (desculpem) os “escritores” descartáveis que publicam os livros de verão, temáticos ou não, porque publicar passou a ser sinônimo apenas de vender.
Existe algo mais descartável do que aquilo a que está reduzido o antigo talento de João Ubaldo Ribeiro? Do ótimo Sargento Getúlio aos budas e faróis perdidos da sua atual produção, o baiano de Viva o povo brasileiro ilumina, hoje, apenas o fundo das garrafas, por trás daqueles óculos de chinês emparedado pelos objetivos da Objetiva.
Você conhece algo mais ridículo do que o “romance” de Nelsinho Motta, publicado também para fazer dinheiro (e rapidamente), enquanto o leitor não se arrepende, dando um volta pelo shopping, e volta para trocar O canto da sereia por qualquer porcaria menos amadorística? Todavia, estamos num país em que qualquer Carlos Heitor Cony passa por grande romancista, entra na Academia dos Josué Montello (mais de cem livros publicados, nenhum de real importância) e esbarra, na porta, com o Paulo Coelho… no qual reconheço uma certa honestidade de propósitos, sim senhor: ele escreve para vender, podia ser um fabricante de calçados ou de papel higiênico ilustrado, acho que ele pelo menos não engana, não é escritor — no real sentido da palavra —, não ilude ninguém (pode-se dizer), só enganou mesmo foi a Academia presidida por um tal de Niskier. Mas deixemos a casa de Machado de Assis em paz — embora Machado certamente esteja se revirando na tumba que fica intramuros da instituição culturalmente mais irrelevante do Brasil.
Os milhões do “mago” não deviam despertar o ressentimento de ninguém que também não inveje a conta bancária de profissionais do ramo do entretenimento barato (apesar de livro ser bem caro, neste país), como Gugu Liberato e outros sujeitos. Coelho é dono de uma barraca numa grande feira, sabe disso e deveria ser esquecido quando o assunto é literatura e o que estão fazendo dela os “contadores de causos”, os humoristas, os engraçadinhos de plantão, os falsos novelistas policiais, os ficcionistas da USP/Folha de São Paulo e os diluidores da diluição que estão empurrando principalmente a ficção brasileira para uma desimportância monumental, sonhando com o Nobel (para quem?) assim como os Cacá Diegues ainda sonham com o Oscar de filme estrangeiro porque Deus é brasileiro (mas nem tanto).
Este é um país que se prepara para esquecer João Antônio, enquanto não lê Hilda Hilst — cuja obra completa Wagner Carelli contratou, enquanto diretor-editorial da Globo, contra a vontade dos diretores supremos da minha ex-editora. O selo dos Marinho, após a passagem brilhante de Carelli, voltou à monotonia dos seus velhos títulos anódinos, e perdemos a oportunidade de ter uma casa editora de peso editando poesia de alta qualidade (a de Moacir Amâncio, por exemplo) e ficção como a da Hilst (Hilda jamais entrará na Academia, graças a Allah — e às auto-exigências dessa escritora realmente importante). É preciso que se diga e se escreva a verdade, ao menos uma vez na vida. Se este for o último Rascunho — eu espero que não —, que fique dito (ou ao menos apontado) o mal que vem de um mercado editorial atualmente conhecendo a decadência sem ter passado por nenhum tipo de apogeu, depois dos anos 30 de Lobato e do regionalismo que José Olympio editou com coragem e cupidez. Todo editor é ganancioso, costuma se generalizar, mas poucos são corajosos, digo eu.
Neste momento, no limiar difícil de um século 21 que já está dizendo a que veio, seria necessário que a literatura brasileira retomasse contato com os grandes veios que partem de Machado e passam por Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso, Clarice — penso na ficção, sempre —, em substituição aos “neo-modelos” de fora e de dentro, do fraco Rubem Fonseca e da mistura com mais qualquer coisa “temática” do interesse de editores supostamente “intelectuais” que têm no bolso a parte mais dolorida da sua anatomia de letras & companhia limitada. Ou limitadíssima.
O país é imenso, e não só geograficamente. A nossa população letrada cresceu, a internet de algum modo propaga o gosto literário e até a prática da escrita, a comunicação pela palavra não-aposentada. Ninguém me convence de que, em algum rincão obscuro desta nação contraditória, não estejam em atividade escritores velhos e jovens, cujas obras não logram alcançar as editoras ocupadas com o descartável, fixadas no lucro imediato, esquecidas de que “o futuro tem um coração antigo” (Carlo Levi). Dentre os maduros, posso citar um Hamilton Alves, de Santa Catarina, que escreve, lá sua ilha, “sem esperança — segundo ele — de conseguir chegar às grandes casas editoriais brasileiras”, e, dentre os mais jovens, em Curitiba mesmo se encontra um Wilson Sagae, perseguindo metas que não vê como “do interesse da maioria dos editores nacionais”, interessados em ficção de consumo rápido e de engano (se possível) perene.
Contudo, não é possível enganar muitos por muito tempo… e a presente hora é, talvez, de novas editoras que surjam para manter o compromisso com a qualidade e a renovação capazes de salvar a literatura contemporânea brasileira da desimportância fatal para a qual desponta, com aquela “alegria suicida de doidos”, segundo a frase inicial de Graumann em A senda da surata, o livro do caminho reto que se bifurca.