Desorganizar a biblioteca

Francisco Bosco surpreende com livro delicado e intenso sobre o mundo da leitura e a leitura do mundo
Francisco Bosco reproduz o mundo afetivo do conhecimento
01/05/2004

Eu não pretendia ler de cara Da amizade, apenas espiar. Despretensiosamente. De uma espiadela comprida, terminei, sem perceber, devorando a pequena e cintilante obra. O quarto livro do carioca Francisco Bosco (publicou antes Florestado, Atrás da porta e Rutilante) tem uma elegância que desentorta a boca. Livro que não faz barulho, silencioso como uma livraria civilizada. Livro que comove ouvindo a chuva lírica. É um manual poético sobre leitura e leitores, que desperta a comoção, porém não ensina a comover. “Convicção é igual a certeza menos a verdade.” Não é verso, mas poesia. Não é filosofia, mas pensamento. Não é música, entretanto, oferece a harmonia de uma composição. Uma surpresa madura, que dispensa a classificação etária do jovem autor. Diário de incertezas e observações sobre a literatura, revelando as dificuldades de encontrar um lugar na estante aos livros xerocados. Eles surgem natimortos. “Os livros xerocados não são livros./ Ocupam o último círculo das estantes, onde não os alcança o amor dos olhos.” A exaltação da simplicidade descende de uma fé leiga. Francisco Bosco reproduz o mundo afetivo do conhecimento. Ele relata as peripécias do leitor desde a compra de um exemplar até seu engavetamento (ou na memória ou na prateleira, dois infernos possíveis). “As livrarias são o consulado do leitor, um pedaço de terra natal em qualquer país estrangeiro.” É de se concordar com a cabeça. Os livros são identificados como pessoas, com humores e temperamentos, manias e cacoetes. “Há livros que berram, como as pessoas grossas.” As descrições aleatórias vão cativando e diferenciando o óbvio da descoberta sensível. O poeta mostra que os sujeitos que não falam de repente não têm silêncio e os que falam muito podem ser silenciosos. “O silêncio é uma espessura.” Desmistifica a superfície, cava contradições. O que é contraditório assume sua condição de poético. O poético é uma contradição necessária.

Bosco traz aforismos em fila indiana. Desfruta do humor para destilar suas reflexões. É um bibliotecário desorganizando. Cataloga os livros pela cor, não pelo assunto. Suas impressões correspondem às emoções acima de dados. Descobre os problemas, pouco interessado em dar soluções. Escuta as verdades e os símbolos dos sonhos e não os sonhos. Tudo é arma para sua sagacidade. Nem os livros antigos recebem alta: “as páginas se soltam”, “os dedos ficam manchados”, “para um alérgico são piores que rapé”.

Já no início antecipa-se ao leitor:

O leitor se depara como uma antiga anotação sua à margem de um livro:
é como ouvir a própria voz no gravador
ou, pior, ver a própria imagem na televisão
— uma estranha familiaridade

O leitor que se relê é um escritor que se duvida. Quem escuta seu timbre no gravador desconfia da veracidade. O mesmo acontece com a leitura. Aquilo que foi lido não representa mais o que se é. O verdadeiro leitor é um atrasado contumaz de sua própria crença.

Da amizade propõe um jogo informal pelas bordas e periferias da voz, primo em terceiro grau de Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, onde o autor deixa a história para se fixar na biografia do leitor que o compra. Bosco escreve com a distração de uma conversa, examinando não sua poesia, mas o que acontece fora de sua poesia. “Todos os leitores são suspeitos”, afirma, para não deixar incerteza de sua falta de isenção. Expõe que somente na estranheza é possível amadurecer a intimidade. Descreve a irritação do aprendizado de uma língua estrangeira pela consulta insistente ao dicionário. No fluxo, percebe que a poesia é um idioma dentro do próprio idioma. Talvez a diferença seja que as palavras não são consultadas, mas adivinhadas.

O escritor absorve as interferências, prevê a amputação. Quando se elege um mundo na escrita, elimina todos os demais. Escolher é também renunciar. “Escrever é perder o corpo.” A verdade torna-se a coincidência de dúvidas. Coincidir dúvidas aproximam estranhos. Francisco Bosco roça a magia. Lê o leitor, sem claustrofobia, ao ar livre. Com perícia, na última seção que homenageia João Cabral, compreende que o interlocutor precisa largar o livro e olhar aos lados para “ver se o mundo continua em seu lugar’”.

Até a poesia brasileira entra no jogo e recebe vaia. “O problema não é a falta de público no estádio, mas a impressão de que jogam sem a bola.” Do mesmo modo que se concorda com Bosco, se discorda. Discordar é aumentar a efusão do debate. Sobre essa metáfora da poesia, penso que o mérito da poesia é exatamente jogar sem a bola (o que mais se gostava do Garrincha, por exemplo, é o drible de corpo, quando ele dispensava a bola).

Um escritor começa a publicar porque não se satisfaz com o que lê. Usando um dilema borgeano, passará a vida entre o gostaria de escrever e o que é capaz de escrever. Assim o leitor enfrentará igual desafio: indeciso entre o que gostaria de ser e o que é capaz de ser. As duas insatisfações conversam, mudam de lugar e se completam.

Da amizade
Francisco Bosco
7Letras
67 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho