Desnorteio e permanência

Resenha do livro "Cinquenta poemas", de Gérard de Nerval
Gérard de Nerval, autor de “Cinquenta poemas”
01/07/2014

A partir de 2013, o leitor brasileiro pôde saborear a publicação de Cinquenta poemas de Gérard de Nerval. A Ateliê, no entanto, não se contentou apenas em pôr novamente em circulação a poesia obrigatória do escritor francês, como trouxe a lume uma bela edição bilíngue, em capa dura, com estudo introdutório e súmula biográfica. As notas inseridas no rodapé dos poemas também conferem uma legibilidade aos textos e os retiram de alguma eventual neblina. Tudo isso numa disposição equilibrada da página e com sóbria elegância das fontes. A tradução de Mauro Gama se mostrou igualmente primorosa, com boa fidelidade ao esquema rímico e métrico. E contemplando, com esparsas exceções, as cadências responsáveis pela manutenção de ritmo, na passagem para a língua vernácula.

Apesar das notáveis qualidades editoriais, certas restrições não devem ser ignoradas. Boas coletâneas costumam trazer os poemas enfeixados em seções cronologicamente ordenadas, e com os nomes dos livros a que pertencem distinguindo-as umas das outras. O modelo, que não foi seguido na presente antologia, é fundamental para que os escritos sejam devidamente interpretados no diálogo com seu tempo (ganhando, assim, maior poder de enunciação) e também para que o percurso do autor — seu amadurecimento estético — esteja sob a alça de mira da leitura. Outra lacuna será observada no que concerne ao rigor tipográfico da impressão: um sem-número de erros de grafia expõe certa cleptomania verbal, que poderia comprometer a credibilidade do volume, ainda mais quando os equívocos são de pontuação — para os quais a clareza do lapso praticamente desaparece, ficando o leitor efetivamente à deriva. Se deslizes semelhantes são toleráveis em tantos outros gêneros, na poesia — linguagem condensada por excelência — findam por sequestrar certo alcance de leitura e reduzem a barthesiana significância. A tradução, por sua vez, muito embora apresente a qualidade a que já nos referimos, ora adjetiva em excesso (subtraindo o caráter objetal que flagramos em O pôr do sol, por exemplo), ora potencializa o poema basilar, como é possível notar no “convenções solares” do quinto poema de Cristo no Jardim das Oliveiras.

À parte esses aspectos, pode-se dizer que a arte de Nerval foi muito bem apresentada. Ali, traços importantes de sua escritura apareceram de maneira pronunciada: a regularidade formal que traz consigo sempre uma musicalidade líquida e o descritivismo em cores fortes, a compor retratos simulando movimento. É o que o princípio do livro — o poema Abril — já permite vislumbrar: “Os belos dias já. A poeira,/ Um céu de azul e luz inteira,/ Muros em chama, tardes largas…/ Nada de verde. Só, agora,/ Rubro reflexo que decora/ Negras árvores, suas cargas.// […] Virente e rósea, a primavera,/ Qual clara ninfa, já se esmera/ E emerge da água, em seu sorriso!”. O elogio de abril (índice da primavera) chega como um quadro, que se confirma retoricamente (os motivos assomam sob as tintas: azul, verde, rubro, negras, virente e rósea) e se compara a uma ninfa saindo do mar: ut pictura poiesis. A melopeia, por seu turno, impõe sua expressão em Fantasia: uma ária gera o poema que lhe faz referência, mimetizando-a em quadras decassílabas e “encarnadas cores”. Essa variedade de matizes vai percorrer a obra inteira, o que o poema As borboletas nos deixa evidente. Do mesmo modo, a sonoridade jamais se verá ausente em Nerval. E isto até o final da coletânea, como a Melodia irlandesa ratifica: cesuras imitam a ondulação da barcarola e a alma, em movimento, imobiliza-se ao fim da vida — como a embarcação vê perderem-se as ondas ao declínio da tarde. A tópica da lamentação da juventude perdida se compõe, então, por todo esse jogo sensorial intenso.

É com esse rigor que os temas românticos vão ganhando forma simbolista, em cada um dos poemas que se descortinam: o canto da natureza e das estações qual refrigério do espírito; as desilusões amorosas, já prefiguradas na evanescência da pessoa amada (Romança, Deixa-me!); o mito da Idade de Ouro (como em Nobres e criados); a vida como valor negativo, cujo licor é veneno (não por acaso um dos poemas que guardam tal percepção chama-se Pensamento de Byron) e cuja consequência mais provável é o suicídio (Coro subterrâneo). Mas o ápice do dilaceramento repousa sobre um de seus sonetos mais conhecidos, composto em alexandrinos perfeitos (a tradução deixou escapar a simetria da cadência): El desdichado. Com um núcleo vocabular sombrio (tenebroso, viúvo, sol negro, noite tumular) que serve de balsa à dupla travessia do Aqueronte, o escrito antecipa as aventuras melancólicas e spleenianas de seu admirador Charles Baudelaire. Ramo igualmente aderente à estética romântica, mas transfigurado em Nerval pelas formas emergentes e herméticas que a escola de Verlaine e Mallarmé desenvolveria, as narrativas mitológicas circulam pelo livro: a egípcia em Hórus ou a helênica, no soneto Ânteros.

É preciso ter sempre em mente, porém, que a densidade verbal do autor, como um vidro espesso, menos reflete romanticamente as impressões do mundo que as refrata numa mitologia pessoal, como nos observa Mauro Gama, em seu prefácio. Inaugurando, em certa medida, a poesia de menor transparência da modernidade, Nerval prefere, a dizer o que sente, sentir o que diz: “O que se anuncia, neste caso, […] é a morte do indivíduo escritor, a anulação de sua identidade na vivificação da linguagem”, sublinhará Gama uma vez mais.

Como aperitivo da revolução literária do autor de Chimères, deixamos um pouco de seu teor paródico e desnorteante (similar à lama no paletó, da “Nova Poética” bandeiriana), presente em Cristo no Jardim das Oliveiras. Aqui, testemunha-se uma inversão bíblica e o Messias — em dia de Nietzsche, rendido à pouca fé — suspende a derradeira âncora e deixa o mundo, num desespero ignorado e sonolento, vazio de transcendência: “ ‘O deus deixou o altar, de que sou o imolado…/ Já não existe Deus!’ E eles sempre dormindo! […]// ‘Buscando o olho de Deus, só a órbita vi, estrita,/ Vasta, negra, sem cerne, assim a noite que a habita/ No mundo se irradiam arcabouços dispersos’ ”. A letargia dos fieis, sugerindo um credo que se apoia e se justifica sobre a negligência ou a distração, é um pouco da porção de ironia moderna que o poeta nos entrega. Sem a menor pretensão de fazer carreira literária, o poeta obstinado por suas mitologias pessoais (dentre as quais sobressai a imago materna, transfigurada nas amantes impossíveis) escapa à littérature protocolar que Verlaine censurou, em Art poétique. Com a força de suas imagens singulares, revoltas e escatológicas (o olho de Deus: vácuo e abismo), disfarçadas em octossílabos impecáveis ou em alexandrinos insuspeitos, Nerval reinaugura a literatura com sua calmaria aparente e vulcânica. E é através dela que, tal como lemos em Nossa Senhora de Paris, acredita numa permanência da sensibilidade — suplantando o assédio do tempo e a permanência da pedra.

Cinquenta poemas

Gérard de Nerval
Trad.: Mauro Gama
Ateliê
144 págs.
Gérard de Nerval
Nasceu em Paris em 1808. Escritor nuclear para a literatura francesa, produziu obras-primas como Les Filles du Feu e Aurélia. Morreu em 1855.
Peron Rios

É mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorando em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa e pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. Autor do livro A Viagem Infinita: estudos sobre ‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto, é professor de Literatura do Colégio de Aplicação da UFPE.

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