Desertos vermelhos

No violento “Meridiano de sangue”, Cormac McCarthy recria mito do Oeste americano
Cormac McCarthy por Ramon Muniz
01/02/2010

Sobre Meridiano de sangue ou O rubor crepuscular no Oeste, reeditado pela Objetiva, um crítico do The New York Times disse, quando do seu lançamento em 1985, que a obra era um tapa no rosto de leitor. Se fosse menos polido, teria dito “um chute nas partes íntimas” e seria mais preciso. Pois nessa reinvenção do Oeste americano o homem é reduzido à brutal existência, em um meio igualmente despido de concessões abstratas que não o código universal do medo e da violência. E poucos traduziram tão bem a desesperança humana quando Cormac McCarthy, um dos mais importantes escritores norte-americanos da atualidade.

Mesmo que o leitor mais sensível se incomode com as descrições de massacres e a absoluta falta de horizonte moral dos personagens, a prosa ao mesmo tempo seca e lírica, as ambientações detalhistas, a figura marcante do juiz Holden e o ritmo quase cinematográfico da narrativa tornarão inevitável a imersão no meridiano sangrento do autor.

Com dez livros publicados, entre eles dois adaptados para o cinema — Onde os velhos não têm vez (2005) e A estrada (2006) —, McCarthy conquistou fãs e acadêmicos, mas divide os críticos com os altos e baixos de sua produção. Meridiano de sangue, além de ser considerado por alguns especialistas o seu melhor romance (para o crítico Harold Bloom, o melhor já escrito nos Estados Unidos desde Enquanto agonizo [1930], de William Faulkner), é uma espécie de rito de passagem na carreira do escritor. Até então ele havia publicado quatro ficções: The orchard keeper (1965), Outer dark (1968), Child of God (1974) e Suttree (1979).

Mas é com Meridiano que McCarthy atinge a excelência de sua marca autoral e define a temática épica que iria explorar na Trilogia da fronteira, composta por Todos os belos cavalos (1992), A travessia (1994) e Cidades da planície (1998), já publicados no Brasil.

O texto é econômico em pontuações, como quando se abstém de outras conjunções que não o “e” entre as frases — “Atravessou uma floresta de carvalhos vivos e bebeu de um regato e seguiu ao crepúsculo e acampou sem fazer fogueira. (…) Nessa noite ele se sentou no acampamento dos vaqueiros e comeu feijões e bolachas duras e ouviu sobre a vida pelas trilhas” —, o que lhe rendeu comparações com Faulkner, além do reconhecimento de vestígios que vão do Velho Testamento e Shakespeare até Herman Melville.

Cabeças de bebês
Para compor a história, McCarthy pesquisou sobre eventos reais ocorridos entre os anos de 1840 e 1850 na fronteira do Texas com o México envolvendo a chamada “Gangue Glanton”, um grupo de caçadores de escalpos liderados por John Joel Glanton, que realmente existiu. Numa região pontuada por conflitos com povos indígenas, eles firmaram contratos com governadores de estados mexicanos, pelos quais receberiam US$ 100 por escalpo e US$ 1 mil pela cabeça de Gómez, líder de uma gangue de comanches que dizimou uma vila em Chihuahua.

Ocorre que nem cabeças deformadas nem escalpos poderiam ser identificados com muita exatidão pelos contratantes. E os mercenários tomam gosto pelo trabalho, arrancando o topo da cabeça de índios, mexicanos, peregrinos, homens, mulheres e crianças sem maior distinção ou titubeio, enquanto eram recebidos como heróis em povoados que também passaram a saquear e estuprar e assassinar camponeses. “Cabelos, rapazes (…). A fonte do nosso ramo ainda não secou”, diz Glanton em meio a uma das matanças e antes do grupo ser proscrito do ramo e perseguido pelo exército no deserto de Sonora.

O faroeste de McCarthy é assim despojado de falsas dicotomias entre o bem e o mal, o herói e o vilão, evitando tanto as lendas da conquista do Oeste encarnadas por John Wayne quanto o revisionismo dos povos indígenas vitimados, o que torna a saga contada por Hollywood tão anódina quando um desenho animado da Disney.

As cenas de massacres que se sucedem dão o peso da ausência do norte moral dos protagonistas, como esta:

Quando Glanton e seus oficiais voltaram à carga contra a aldeia as pessoas fugiam sob os cascos e os cavalos empinavam e pisoteavam e alguns dos homens apeados corriam entre as cabanas com tochas e arrastavam as vítimas para fora, lambuzadas e pingando sangue, golpeando os moribundos e decapitando os que se ajoelhavam pedindo clemência. Havia no acampamento uma certa quantidade de escravos mexicanos e estes saíram correndo gritando em espanhol e tiveram a cabeça esmagada ou foram abatidos com tiros e um dos delawares emergiu da fumaça segurando um bebê nu em cada mão e se agachou junto a um círculo de pedras com restos de comida e os balançou pelos calcanhares um de cada vez e esmagou suas cabeças contra as pedras de modo que os miolos espirraram pela fontanela em um vômito sanguinolento (…).

Numa outra passagem, os cavaleiros chegam à cidade com os escalpos, reclamando o pagamento. A descrição que o escritor oferece desafia qualquer outra encenação do faroeste, na medida em que nega o menor traço de civilização à tropa que usa, a título de adereços, escalpos, cabeças, dentes e peles humanas. Eles estão famintos, sedentos e feridos; quando podem, devoram carne crua e bebem ao lado dos cavalos, indistintos em animalidade. Ao se dirigirem ao banho público, sujos de sangue e poeira do deserto, são vistos “(…) tatuados, marcados a ferro, suturados, as enormes cicatrizes enrugadas criadas sabe-se Deus onde por que bárbaros cirurgiões através de peitos e abdomens como rastros de milípedes gigantescos, alguns deformados, dedos faltando, olhos, suas testas e braços estampados com letras e números como se fossem artigos à espera de um inventário”.

McCarthy chegou a aprender espanhol e visitar lugares citados nos livros que pesquisou para escrever a obra, o que contribuiu para suas descrições precisas e atentas do cenário. Essa ambientação, aliás, é um dos méritos do romance. Nela, a natureza se torna tão ameaçadora quanto os próprios índios ou mexicanos no encalço dos protagonistas, conforme o seguinte trecho:

Paliçadas de ossos dividiam os arredores pequenos e poeirentos e a morte parecia ser a característica mais proeminente da paisagem. Estranhas cercas polidas pela areia e o vento e alvejadas e trincadas pelo sol como porcelana antiga com rachaduras secas e marrons da intempérie e onde nada vivo se movia. As formas enrugadas dos cavaleiros passaram tilintando pela terra seca cor de bistre e pela fachada de barro do jacal, os cavalos estremecendo, farejando água.

Ou neste, em que fala de um “mundo cozido”, para passar a idéia do calor do deserto, e do “poente cor de sangue”:

Cruzaram o del Norte e cavalgaram no rumo sul por uma terra ainda mais hostil. Durante todo o dia se agachavam como corujas à sombra avara da acácia perscrutando aquele mundo cozido. Diabos de poeira remoinhavam no horizonte como a fumaça de fogueiras distantes mas de coisa vivente não se via sinal. Miraram o sol em seu circo e ao lusco-fusco cavalgaram para o frescor da planície onde o céu do poente estava da cor do sangue.

Feios, sujos e malvados
O primeiro fio narrativo é dado por um adolescente analfabeto e revoltado, culpado pelo pai pela morte da mãe no parto, chamado apenas de “kid”. Ele foge de casa aos 14 anos para uma vida errante de brigas e prisão, até ser recrutado pelos caçadores de escalpos. No grupo, estabelece algum laço de amizade com figuras peculiares como o ex-padre Benjamin Tobin, David Brown, que usa um colar de orelhas humanas, e Louis Toadvine, que oculta sob a cabeleira sebosa iniciais marcadas a ferro na testa e as orelhas mutiladas.

O personagem fictício de “kid” predomina nos primeiros capítulos e confere uma perspectiva passiva sobre os eventos narrados, fatigada pelo mormaço do deserto.

O segundo eixo narrativo é traçado pelo juiz Holden, um dos personagens mais marcantes da literatura americana. Como disse Bloom em entrevista: “A violência é o livro. O juiz é o livro, e o juiz é, ao lado de Moby Dick, a mais monstruosa aparição em toda literatura americana. O juiz é a violência encarnada”. De fato, são comuns os paralelos feitos entre do juiz Holden com o capitão Ahab, de Moby Dick, de Melville ou Kurtz, de O coração das trevas, de Joseph Conrad.

Holden é uma criatura demoníaca. Tem mais de dois metros e dez de altura (apesar das mãos e pés diminutos, femininos) e o corpo completamente desprovido de pêlos, inclusive cílios e sobrancelhas. Domina várias línguas e viajou pela Europa, enquanto a maioria da tropa mal articula frases completas. Possui conhecimentos científicos e registra em uma caderneta que traz nos bolsos desenhos e anotações sobre a fauna e flora. Polido, sedutor, manipulador, seja numa festa dançando e tocando violino ou escalpelando vítimas, afogando filhotes de cães por prazer e degolando uma criança sem qualquer motivo, age com a mesma arrogância, seguro de sua imortalidade.

Quando Holden fala, costura na trama um discurso teológico e filosófico que chega a contrastar com a linguagem primitiva de Meridiano. Através dele dialoga Francis Bacon, quando justifica os desígnios da razão sobre a natureza:

Só a natureza pode escravizar o homem e só quando a existência da última entidade tiver sido desencavada e exposta diante dele é que ele se tornará do modo apropriado o suserano da terra (…) O homem que acredita que os segredos do mundo estão escondidos para sempre vive em miséria e medo. A superstição o arrasta para o fundo.

E fala também Nietzsche, sobre a moral dos fracos e dos fortes: “A lei moral é uma invenção da humanidade para destituir de seus direitos os fortes em favor dos fracos. A lei da história a subverte a cada avanço”.

Mas o que mais surpreende é a argumentação que serve de justificativa para os massacres. Segundo Holden, a natureza do homem é o jogo, e o maior jogo de todos é a guerra, a qual todo homem está destinado. “A guerra é deus”, afirma o juiz, no sentido de ser o motor da existência e da evolução da espécie, numa subversão darwiniana expressa na “sobrevivência dos mais fortes” de Herbert Spencer.

Agindo nas sombras, é no juiz, não em Glanton, que está a base espiritual e intelectual dos mercenários. A frase “A guerra é deus” poderia bem ter sido extraída de um discurso de George W. Bush em sua guerra contra o terror conduzida no Oriente Médio, tão contemporâneo nos soa o ocaso civilizatório de McCarthy.

Talvez esteja nesse ruído religioso e cheio de simbolismo aquilo que seduz o leitor e compensa uma eventual repulsa aos atos e à ambigüidade dos personagens. Restam ainda estranhos paralelismos com a violência do cangaço nordestino, Euclides da Cunha e a cosmogonia dos “grandes sertões”. Numa dimensão intertextual, seria também plausível ouvir o juiz Holden clamar no deserto: “Viver é negócio muito perigoso…”

Meridiano de sangue ou O rubor crepuscular no Oeste
Cormac McCarthy
Trad.: Cássio de Arantes Leite
Alfaguara
351 págs.
Cormac McCarthy
Nasceu em Rhode Island, em 1933. Estudou na Universidade de Tennessee, em Knouxville, e serviu na Força Aérea americana nos anos 1950. Publicou o primeiro romance, The orchard keeper, em 1965. Escreveu outros nove livros, incluindo o mais aclamado, Meridiano de sangue (1985), e a chamada Trilogia da fronteira, nos quais explora o tema da violência e da mitologia do Oeste americano. Ganhou prêmios literários como o National Book Award e o National Book Critics Circle Award. Também escreveu roteiros para o cinema. Seus dois últimos romances, Onde os velhos não têm vez (2005) e A estrada (2006), foram adaptados para as telas. Vive com a terceira mulher e o filho em Santa Fé, Novo México. São raras suas entrevistas e aparições públicas.
José Renato Salatiel

é jornalista e professor universitário.

Rascunho