Deserto de entressafra

"Discurso para desertos", de Denise Emmer, tem o mérito de articular o universo poético da autora em contrapontos
Denise Emmer, autora de “Discurso para desertos”
30/06/2018

Discurso para desertos, de Denise Emmer, é um livro que sonda o vazio, partindo da característica mais constitutiva do lírico — a recordação — para abrir um arco até o esquecimento absoluto. Nesse sentido, é exemplar a disposição do poema Prólogo, sobre mortos recentes, ao lado do mais longo Meus mortos já vão longe. No primeiro, “Quem acaba de morrer/ Não morre tanto/ Ainda permeia pelos cantos”; no segundo, aproximam-se os mortos do “deserto longínquo abstrato”.

Não se trata exatamente de palinódia, o poema que desdiz algum anterior. São pequenas ressalvas ou desenvolvimentos imprevistos, sem compor espelhamento. É com esse tipo de contraponto que Denise Emmer articula em planos as obsessões que lhe renderam uma múltipla formação: em Física, em Música, como escritora e até como montanhista. Da Música, o próprio contraponto e algumas assonâncias que lhe garantem a beleza do verso; da Física, uma indagação que oscila entre a postura científica e uma inquietação transcendente, alcançando esse “longínquo abstrato”, a morte, que se equipara ao signo de força do livro — deserto.

Vejamos um dos pares contrapontísticos com ênfase na tensão Física x transcendência. Dá-se quando retifica o poema Restos, que afirmava um (re)encontro só possível em pesadelos, no poema seguinte, Réplica, quando retoma: “Do poema anterior/ discordo em parte/ pois o átomo transcende/ e o espírito divide-se/ em múltiplas partículas/ Partituras claves”.

Em Ao parvo (I e II), o contraponto serve inicialmente para que Emmer responda às pechas que lhe colocam por sua filiação ilustre — os dramaturgos Dias Gomes e Janete Clair — a um hipotético “parvo” que vê nisso a razão (única) de sua fatura artística. De fato, é comum encontrar a menção aos pais nas apresentações de Emmer, que nunca usou o sobrenome real paterno e, quanto ao materno, preferiu-lhe o real ao pseudônimo, para assim compor o seu próprio nome literário — já por demais provado em tantas publicações.

Desses dois poemas, interessa observar que, se a imagística de Ao parvo I remete à ciência (“tua mãe e teu pai voavam/ pelas ondas siderais dos palacetes”; ou “da paterna álgebra sinistra), as imagens do contraponto, Ao parvo II, indagam justamente da música: “E a música de onde adviria?/ da união de um piano com um relâmpago?” Essa ironia diz muito. A voz poética se afirma em sua singularidade e, a estas alturas, Emmer já se pode dar ao luxo de articular seus signos de eleição sem muito didatismo, pois Discurso para desertos já tem atrás de si toda uma obra feita e consistente.

Voltando ao signo “relâmpago”: evoca de início uma dimensão estilística, o “relâmpago” como gosto pela elipse, pela escrita sincopada — abolindo muitas vezes vírgulas e aproximando as imagens, criando adjetivações como o já citado Partitura clave. Mas esse “relâmpago” também remete à terceira obsessão de Emmer, o que podemos chamar de “sensibilidade geográfica”: comunica-se, por exemplo, com um dos signos mais caros de sua lírica anterior, a montanha, agora pontualmente retomado. No novo livro, quando diz que “As montanhas correm/ junto às nuvens/ porque não são mares/ onde tudo muda/ qual água e piano”, o aparente nonsense é a rotação dos elementos eletivos de sua poesia: pode-se lê-lo na perspectiva da ilusão de ótica que as nuvens causam, ao mover-se, fazendo parecer que a paisagem é que se move. A poesia inverte a lógica, afirma o movimento da montanha — mas este é significativamente diferente da fluidez da água, e esta outra se identifica com o som do piano. Tais versos são quase uma equação poética, onde os sinais vão trocados para que o leitor atente em uma realidade subjetivada. Assim, montanha (negativo, porque inerte), move-se junto às nuvens (que se tornam negativas, fazendo positiva a montanha), o que se equipara à mobilidade dos mares, mas, ao mesmo tempo, guarda uma diferença: não mudam tanto quanto a água e o piano.

Metamorfose
Ora, que mudança é essa, a das montanhas? A técnica de imagem, em Denise Emmer, é tributária da contaminação surrealista, como os quadros de René Magritte em que pés e sapatos se fundem. O estranho resultado nos traz algo como uma metamorfose “de fora para dentro”, exterior ao ser das coisas; mas tudo poderá ser um jogo de nossa humana perspectiva. Parece ser isso o que persegue a poesia de Denise Emmer, principalmente agora, em Discurso para desertos, quando esbarra muitas vezes em uma ideia de morte inapreensível, convivendo com a morte factual. Diz no já citado poema sobre os mortos distantes: “Caminham montes sem norte/ estão mais longe que a morte”.

O culminar dessa prospecção é a série final, homônima ao livro, na qual Emmer, em poemas curtos sequenciais, revisita paisagens desérticas — Antofagasta, Antártida, Saara. O discurso brinca com as funções possíveis da preposição para, e muitas vezes é tanto aquele que o poeta faz diante da paisagem nua, quanto o que ela, paisagem, poderia fazer-lhe: “Os desertos falam/ A linguagem/ Das pausas/ E dos homens/ Quando guardam/ Descansar/ A própria alma”. Nesse andamento, é consequencial que alguns poemas tratem da existência divina, que Emmer não nega, mas de que tenta cautelosa aproximar-se — musical e científica — como em Vizinho de Deus.

Todos esses momentos de poesia bem realizada, contudo, convivem mal com a obra anterior da autora. Porque o grande problema do leitor de Discurso para desertos é conhecer um pouco o que Emmer produziu antes, apesar da articulação evidente (e por isso mesmo). Torna-se difícil aceitar a facilidade e, até, a autocomplacência, quando quem dizia “lagoas são rastros dos mares” (Suíte para uma lagoa mansa, Poesia reunida, 2002), agora divaga: “O deserto é o inverso do mar/ Não sei dizer nem explicar. Não sei/ mas é assim o voo do mundo/ a me falar” (Das medidas).

Fazer poesia é também dar nome às coisas. Para o que não sabe, com uso do discurso corrente, o poeta tem a metáfora — e Denise Emmer sempre nos deu excelentes. Agora se mostra um tanto hesitante, pelo menos até a série final — e sua linguagem, embora elíptica, nem sempre mantém aquele tônus de “relâmpago”, deslizando em soluções aqui e ali artificiosas, com recurso, por exemplo, a infinitivos nada fluentes (“a falar”, “a buscar nos quadros”, “a empinar as vagas”).

Além disso, há substantivações simplórias (“dou voz ao inaudito”), paroxismos gastos (“não sei/ quem serei/ em instantes/ se como agora/ ou antes”) e tautologias rimadas (“é o que restou/ do amor/ que em mim insiste/ pois que és nada/ e o nada não existe”). Quando suprime pontuação, sobretudo vírgula, o verso nem sempre é ágil, mas apenas truncado, senão repetitivo (veja-se Dura lírica, na abertura, com sua enumeração de “escriba, escrevente, autora”). Tudo faz estranhar essa nova Denise Emmer, bastando recorrer a um pequeno momento de seu décimo quarto livro, Lampadário (2008), para o contraponto:

          Amor amor
         Vieste vazio
         Nada me luz
        Nada me cio
       Já não me entregas teu rio.

Mas por isso mesmo é que o rio se entregava, e caudaloso, antes do deserto que percorre o discurso da obra nova. É, portanto, uma poesia que perde na comparação consigo mesma, e poderíamos citar, acerca das montanhas de Emmer, altos versos sobre a pedra da Gávea ou o morro do Corcovado. Ao que parece, este é um deserto de entressafra, com seus oásis de farta poesia, entre dunas em belos pares contrapontísticos — e umas tantas platitudes dispensáveis.

Discurso para desertos
Denise Emmer
Escrituras
80 págs.
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1958. É poeta e musicista, bacharela em Física e Música (violoncelo) e pós-graduada em Filosofia (latu sensu) pela UFRJ. Pratica montanhismo, o que se reflete em sua produção literária, assim como as outras áreas de interesse e formação. Sua obra, em especial a poética, recebeu prêmios como o ABL, Pen Club, APCA, entre outros.
Wladimir Saldanha

Nasceu em Salvador (BA) em 1977. Publicou, em poesia, Culpe o vento (2014), Lume cardume chama (2014), Cacau inventado (2015), Natal de Herodes (2017) e Arte nova (2021). Organizou e traduziu para o francês a antologia Poesia brasileira em contracorrente (2018), bem como a primeira antologia de poesia belga publicada no Brasil, A tentação das nuvens (2021). Os poemas aqui publicados são do livro inédito Aos que se perdem com as chaves.

Rascunho