Dennis McShade, escritor de narrativas noir, foi durante algum tempo o personagem escolhido pelo jornalista português Dinis Machado para penetrar com mais solidez no mundo da literatura. Nesse tempo, bem à moda dos heterônimos de Fernando Pessoa, Machado revisitava a tradição literária lusitana brincando de ser um outro. Contudo, apesar da produção considerável, apenas com O que diz Molero é que o autor tornou-se um dos grandes nomes da literatura da segunda metade do século 20.
“Ó país de cristal, que longe eu estou, dava um ano de ordenado por um momento da minha inocência perdida”, é o que diz Molero na página zero, fazendo clara referência à situação política vivida por Portugal àquele tempo. Machado afirma ter começado a escrever sua obra-prima algum tempo antes da Revolução dos Cravos (1974), mas só ter podido publicá-la cerca de dois anos depois. Esse marco na história de Portugal se deu porque as Forças Armadas portuguesas, desgastadas com recente guerra colonial, com a situação de atraso econômico e dependência de países europeus mais desenvolvidos, representadas por oficiais de média patente, derrubaram o governo e empossaram um general no poder. Salazar, o ditador deposto, acaba buscando asilo em sua ex-colônia, o Brasil, os partidos políticos são registrados e liberados, e se extingue a polícia política salazarista. Em comemoração, o povo distribui cravos aos fomentadores do movimento rebelde. Era o fim do governo ditatorial.
Fica claro, então, que com um cenário pós-revolução a realidade do país muda radicalmente. Antes uma nação reprimida, com uma população submissa e cheia de intelectuais sufocados pelo regime, e, depois, uma situação de reconstrução do estado democrático e da consciência da liberdade — aliada à insegurança e instabilidade consideráveis. É, pois, uma grande mudança. Dinis Machado chega a afirmar numa entrevista concedida em 1989 que o advento da Revolução permitiu aos escritores a possibilidade de uma expressão mais natural.
Ainda que esse breve esboço lembre muito qualquer remoto fato histórico, o caso é que tal revolução ocorreu em abril de 1974, ano em que Dinis produziu uma obra que repentinamente se viu inserida numa situação histórica muito peculiar. O que não faz dela, de modo algum, um manifesto panfletário. Seu apuro estético é grande; a narrativa é centrada em si mesma, e várias pequenas estórias compõem uma peça bem resolvida. São vários planos narrativos que se sobrepõem formando camadas indissociáveis e harmônicas entre si, mantendo sempre a unidade e a interdependência e garantindo charme ao trabalho.
Em um primeiro plano, localizado em um ponto longínquo, há um certo relatório elaborado por Molero a respeito da vida de um rapaz cujo nome jamais é citado. Sobreposto a ele há um segundo plano, em que Austin e Mister DeLuxe dialogam todo o tempo sobre o que diz Molero a respeito do rapaz. Mais perto do leitor ficam ainda as narrativas do relatório de Molero, que Austin vai lentamente contando a Mister DeLuxe. São situações envolvendo outras personagens, certas coincidências que acontecem na vida delas, casos engraçados, dramáticos e aventureiros, que mais parecem um exercício narrativo infinito. Funciona como um brinquedo infantil, porque quando se abre a caixa maior, dentro há um menor; e dentro uma menor; e dentro uma menor; e dentro uma menor; e infinitas caixinhas umas dentro das outras, escondidas, que se revelam aos poucos, uma a uma, deixando sempre a expectativa pela próxima.
Em seu relatório, Molero transcreve alguns trechos de diários de algumas pessoas do convívio do rapaz, que acabam por construir pequenas narrativas isoladas, por si só cheias de significados. Essas narrativas, no entanto, não informam nada sobre os motivos do relatório feito por Molero, ou sobre o motivo de ter sido o tal rapaz objeto de tantas atenções, pesquisas e discussões.
Austin, por sua vez, passa grande parte do tempo contando a Mister DeLuxe o que traz o relatório, mas seu interlocutor, tal qual os interlocutores dos diálogos de Platão, apenas preparam o leitor para o que será dito pelo narrador, sem tecer qualquer juízo de valor ou grande reflexão. Os comentários de DeLuxe são usados como se fossem escadas para que o narrador possa atingir um objetivo bem específico, qual seja informar o leitor sobre determinado dado sem que pareça interessado nisso. O narrador então comunica como se parecesse não se objetivar a comunicação. Nessa conversa e, a partir da análise da vida do rapaz, Austin passa a fazer considerações filosóficas, impulsionado pelas sutis provocações de Mister DeLuxe.
Mas O que diz Molero, afinal? A resposta pode parecer um pouco frustrante: em verdade, Molero não diz absolutamente nada. Austin é quem rouba a cena quando comenta o relatório escrito por Molero. Mas, não há qualquer evidência de que o tal relatório de fato exista. Austin é que diz que Molero diz, mas Molero não diz nada. É a louvação beckettiana, para quem espera Godot sempre em vão. Isso não significa que a obra seja desinteressante, pobre ou que parta do nada para lugar algum, mas exige a disponibilidade do leitor para buscar no exercício do tecido narrativo elementos que valham as horas de leitura.