Em seu clássico texto A vida ao rés-do-chão , Antonio Candido enumera considerações sobre um gênero corriqueiro, porém pouco estudado nos recônditos da academia: a crônica.
Ensina-nos o professor que se trata de gênero recentíssimo (150 anos, no máximo) e aponta diferenças ao longo dos tempos, desde José de Alencar e Machado de Assis, passando por Olavo Bilac e João do Rio, até chegar nos modernos criadores do que hoje se entende por crônica: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e, acima de tudo, Rubem Braga.
Em seu mais recente livro (Montanha russa), Martha Medeiros exercita com propriedade todos os elementos que justificam a denominação crônica a seus textos. São 100 reflexões, observações, desabafos, que levam ao leitor assuntos cotidianos que a todos perturbam ou enternecem, mas que, pelo olhar arguto do cronista, torna-se peça de leitura e propagação de um pensamento. O maior elogio para um cronista é ouvir: puxa, concordo com você, você disse tudo aquilo que eu sempre quis dizer, mas não saberia como. Por e-mail ou cartas, através de comentários em noites de autógrafos ou mesmo no supermercado, na rua, no ônibus, ouvir isto dos leitores é uma consagração maior e um sinal de rumo acertado.
Mario de Andrade escreveu certa vez que conto é tudo aquilo que o autor chamar conto. Atrevo-me a parafraseá-lo às avessas e dizer que crônica é tudo aquilo que o leitor chamar (ou entender por) crônica. E falo do leitor diário, aquele que compra os jornais e folheia as revistas: sem sua fidelidade, o cronista tem vida curta — ou mesmo, não tem sequer a oportunidade de surgir.
Nos textos de Montanha russa, Martha comenta cinema e televisão. Ironiza bobagens institucionalizadas como a tal história das mulheres que amam demais, num texto excepcional, denominado, sarcástica e inteligentemente, Mulheres que amam de menos. Em todo o livro, a autora fala, acima de tudo, de amor. E prioritariamente, o próprio amor da escritora pela humanidade transparece nos textos, na preocupação para que tenhamos um mundo pouco mais habitável. Neste intuito, desfere farpas contra a sociedade caótica (“Não vivemos numa aldeia global, e sim num barraco global, embolados uns nos outros em gritante promiscuidade. É isso que faz a gente ter saudades do que não viveu.”); declara guerra às datas comemorativas idiotas (“Que o 8 de março seja o dia internacional das pessoas bacanas, usem batom, ou bigode, ou ambos.”); desbanca os preconceitos da classe intelectualóide sobre a felicidade (“mesmo administrando inúmeros conflitos internos, sou feliz, cretinamente feliz. Que me perdoem tal mácula no currículo os que forem infelizes e indubitavelmente mais inteligentes”).
Voltando rapidamente a Antonio Candido: “É importante insistir no papel da simplicidade, brevidade e graça próprias da crônica. Os professores tendem muitas vezes a incutir nos alunos uma idéia falsa de seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e que conseqüentemente a leveza é superficial. Na verdade, aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas”.
Martha dialoga com o professor em muitos de seus textos: “Assim são também as pessoas interessantes: têm falhas. Pessoas perfeitas são como Viena, uma cidade linda, limpa, sem fraturas geológicas, onde tudo funciona e você quase morre de tédio”.
As crônicas talvez sejam uma espécie de fraturas geológicas na história da literatura: aparecem nas falhas, sobem à superfície por descuidos do chão, que se abre num movimento tectônico involuntário e eventual, permitindo que aflorem estas preciosidades.
Em Montanha russa, há muitos jeitos de amar, a importância do verdadeiro companheiro como um lugar de repouso, Diego Rivera e Frida Khalo, a inutilidade do noivado, as bobices do politicamente correto, as inconveniências do crescer em detrimento do simples envelhecer (“crescer dá uma fisgada diária no peito, embrulha o estômago, tem efeitos colaterais. Machuca”), a grama do vizinho, que é sempre mais verde que a nossa, o ciúme que temos das coisas, hábitos e infidelidades, a criatividade “excessiva” do mundo moderno.
E como não podia deixar de ser, há poesia, como na crônica Sala de espera (“Depois a secretária desapareceu da tela do nosso radar, e eu pude descobrir o que só se descobre quando se reparte um silêncio”) ou na crônica Sabor de arco-íris, que é poesia toda-inteira, do início ao fim. Sem contar que “repartir um silêncio” dá uma pitada de Clarice Lispector ao texto que alenta a alma do leitor mais exigente e só faz bem.
Ressalvas? As crônicas não são datadas. Isto pode levar a um pequeno desvio do momento histórico em que foram redigidas, obviamente, pensando nestes textos lidos daqui a cinqüenta anos. Mas acredito que por se tratar de escritos recentes, o fato de pertencerem a um livro lançado em 2003 servirá de base para compreender a sociedade de então (que é a de agora, para nós). Portanto, nada que comprometa a harmonia do volume.
E crônica é isso mesmo: o efeito máximo que se espera é que ao final da leitura nos invada um sentimento de satisfação, de alegria ou indignação, algo desperto e compactuado com o cronista. Uma sensação de ter acabado de ter um papo com o melhor amigo. E Martha Medeiros tem centenas de milhares de melhores amigos e o que é o mais relevante, sabe cultivar essas amizades com afinco e sensibilidade. Sorte nossa!