Desconstruindo Cecília

Resposta de Cecília Prada à resenha Solitário e incompleto, de Guida Fernanda Bittencourt, publicada na edição de fevereiro (58)
A escritora Cecília Prada ficou furiosa com a resenha de Guida Fernanda Bittencourt
01/03/2005

Minha primeira reação à resenha feita por Guida Bittencourt do meu livro Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão na edição de fevereiro do Rascunho foi achar que ela tinha razão: esse título que escolhi, tão sério e comprido, certamente não é adequado para uma obra de ficção. Pode levar a um engano que seria trágico, se não fosse cômico: o de alguém levar a sério a “proposta” e tomá-lo por algum maçudo tratado, ou uma obra sobre arquitetura. Pois não é que isto aconteceu? É o que prova Guida, cometendo um lamentável engano — no início de seu artigo toma-o como livro de ensaio, sim (talvez por ser escassa sua prática de coisas literárias, o que não é o meu caso, que conto com mais de 50 anos dela). Tanto que aplica como critério de avaliação linguajar acadêmico de campo sociológico — eu teria feito um “projeto”, com um propósito muito sério, cabeludo e cheio de óculos, de um estudo pretensamente sistemático que esgotasse todos os “espaços da solidão” que existem pelo mundo, pois disto falava a epígrafe usada, de Paul Auster. E não teria tido sucesso no “objetivo proposto”, deixando-o incompleto.

Para que não seja também incompleta esta minha resposta — e nela, sim, cabe a sistematização que me foi indevidamente cobrada em obra de ficção — permito-me usar tópicos:

1) Então: um livro de ficção, principalmente se é de contos como este meu, não se subordina a regras, ressaibos de métodos e macaqueamentos de academicismos estéreis. Um ficcionista não se propõe teses. Não parte de um plano de trabalho sistemático, nem usa orientadores, nem amarela de covardia diante de bancas examinadoras — ou resenhistas casuais. Vai escrevendo, anos afora, as coisas que a sua sensibilidade, o seu talento, a sua vivência lhe dizem. Vai reunindo seus escritos, ou deixando-os esparsos pelas gavetas, dos móveis ou do ser. Um dia, principalmente se é um tanto “bissexto” como eu (em publicação, não em escritura) — resolve trazê-lo à luz. Ou, como aconteceu no caso deste meu Estudos de interiores…, é procurado por algum editor — aconselhado por gente de muito valor e que entende do ramo, como são os escritores Nelson de Oliveira, Marcelino Freire, José Reiners Terron e Ronaldo Bressane, que organizaram a seleta e prestigiosa coleção “Risco/Ruído” da DBA, onde tenho a honra de figurar.

2) Para o título de um livro de contos, o autor escolhe em geral o de um deles; ou algo que indique um tema predominante, ou um ambiente. Repito: o critério subjetivo, literário, não tem nada que ver com a proposta de uma tese. Mas, eis!… acabo de descobrir uma coisa… eureka!: no caso de Estudos de interiores…, não teria havido mesmo, inconscientemente, uma “proposta”, lúdica e matreira, uma centelha de ironia, capaz de induzir em erro pobres leitores incautos?

3) Sim, é claro, tenho de agradecer à moça por me ter feito compreender essa pequena maldade que, prometo, não repetirei.

Anuncia-se um tratado, justamente para provar que literatura não é nada disso. Acho até que deveria ser inventado, para maior compreensão acadêmica, um ponto de ironia — que, somado aos de interrogação e de exclamação, ajudasse os leitores que pelejam arduamente para entender certos textos um tanto complexos. Deixo aqui uma sugestão a alguns amigos da Academia Brasileira de Letras — onde sei que Rascunho chega — para que apresentem um “projeto de lei” neste sentido. No que se vê a importância que pode assumir uma simples resenha.

4) Mesmo porque, meu Deus, a indução ao erro, que cometi, é grave: não é que novamente Guida é levada por caminhos errôneos? Pois mais adiante muda de opinião, classificando meu livro de contos mais uma vez disparatadamente, como “romance”, pois fala em ”capítulos”, “narrativa ficcional” e toma o conjunto de personagens — inclusive myself — como se estivéssemos todos no mesmo ônibus literário, como se todos (que, entretanto, reconhece diferentes, espantando-se com isso…) fossem iguais, ou peças equivalentes que tentei encaixar em um puzzle, mas, segundo ela, não consegui. Coitada. Misturou tudo. E mostra até uma certa indignação em relação a esses personagens que tanto a desiludem, meninos malvados “capazes de confundir completamente coisas da ordem do sagrado com as do do profano”…etc. Que salada. Por exemplo: chega ao elogio dizendo que escolhi bem o ambiente (“Igreja Católica”) que apresento nos primeiros contos, e logo em seguida, como se fosse um exemplo, cita um excerto do conto que vem em 12º lugar no livro, A clínica ao lado, que não tem nada a ver com os primeiros, nem em temática, nem em estilo, personagens ou objetivo.

O que prova que, na melhor das hipóteses, a moça folheou o livro rapidamente, sem lê-lo. Não sendo sua “crítica”, portanto, digna de maiores considerações.

5) Dito o que, dirijo-me diretamente aos leitores, que é o que me interessa: no geral das coisas literárias, escritores não costumam responder às críticas desfavoráveis — simplesmente as colocam em seu álbum de recortes, de cabeça para baixo. E prosseguem sem mais sua carreira. É o que os amigos e pessoas da família me aconselharam a fazer. Se me dou a esse trabalho é por dois motivos: respeito por mim mesma, pelo que escrevo; respeito pelo leitor.

Não sou muito conhecida do grande público, mas meu álbum de recortes, desde meu lançamento como escritora, aos 19 anos — em 1949 exatamente — não tem, até hoje, nenhuma crítica colada de cabeça para baixo. Certamente não picaram meu retrato pessoas do mais alto gabarito intelectual; como Lygia Fagundes Telles, prefaciadora do meu primeiro livro de contos, Ponto morto, de 1955; nem a do segundo, O caos na sala de jantar, Nádia Battella Gotlib, professora-doutora em literatura brasileira da USP; nem hesitou em apresentar Estudos de interiores… Telê Ancona Lopez, professora-doutora da USP, curadora do arquivo de Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB).

Não se trata de uma patota feminina. Kurt Meyer-Clason, o famoso tradutor para o alemão de García Márquez e Guimarães Rosa, tendo recebido meu livro O caos… escreveu-me, dizendo que já traduzira meu conto La Pietà e pedia-me autorização para publicá-lo em sua antologia Frauen in Lateinamerika 2, onde figurei como representante das escritoras do Brasil. A mesma honra deu-me a comissão organizadora da Feira de Livros de Frankfurt que em 1994 — ano em que o Brasil foi o país-tema do evento — escolheu o mesmo conto para ser lido e transmitido pela rádio alemã na sua inauguração. O mesmo aconteceu na Suécia, onde figuro na antologia Fran Urskog till Megastad entre seletos 35 escritores brasileiros (lista encabeçada por Euclides da Cunha), para a qual me recomendou Lygia Fagundes Telles.

No Brasil também, conhecem-me, escreveram sobre meu estilo os mais gabaritados críticos. Tenho recebido prêmios literários importantes: Revelação de Autor – 1978 – APCA; mas anteriormente fui finalista do Prêmio José Lins do Rego de Ficção de 1965 (2º lugar – Menção Honrosa, e muito honrosa, pois perdi o 1º lugar para Bernardo Elis) pelo livro de contos As raízes predatórias depois incorporados à novela-título de O caos…, esta também classificada em 2º lugar no Prêmio Governador do Estado de São Paulo em 1962.

Nos Estados Unidos, em Portugal, na Itália, minha obra de ficção tem sido divulgada e valorizada. O jornal L’Unità rompeu sua seriedade para abrir-se à ficção, escolhendo meu conto O desafio para inaugurar seu suplemento literário, em 1985. Voltando ao Brasil, meus contos vêm sendo reproduzidos desde os anos 50 e 60, a começar pela famosa revista Senhor e pelo Jornal do Brasil, e em muitas antologias. Somente agora — lançamento previsto em final de março — figuram em duas antologias da Geração Editorial, sendo que uma delas será também lançada na França.

Rascunho publicou meu conto Sílvia em seu número de janeiro de 2004.

Ora, pensarão alguns…vai ver que essa senhora está sentada em cima de louros passados. E que com a idade, naturalmente já não está tão…. Bem. Tem um detalhe: cinco desses meus contos que correm mundo, inclusive o famosíssimo La Pietà — considerado “um clássico” — figuram no meu último livro. Juro que não foi proposital a armadilha que assim armei, para ver se o livro foi ou não lido, pelos resenhistas do momento. Nem deles tomou conhecimento D. Guida Fernanda Bittencourt, na apressadinha resenha que em dia de muito mau humor resolveu fazer.

E como disse essa senhora que “melhor mesmo que a obra é sua orelha, o prefácio e a entrevista com a autora”, faço aqui um desafio ao leitor: os que se derem ao trabalho de comprar meu livro, serão reembolsados parcialmente, como ela pede, no seu artigo, pelo seu conteúdo — contanto que expressem sua indignação por terem sido enganados, mas de uma forma que mostre que amam a literatura, entendem dela. E que sabem escrever.

Cecília Prada

Jornalista, ficcionista e dramaturga. Em 1980, ganhou o prêmio Esso de Reportagem. É autora de Ponto morto, O caos na sala de jantar e Estu-dos de interiores para uma arquitetura da solidão, entre outros.

Rascunho