Na última Festa Literária de Paraty, além da consagração dos autores-celebridades (como Richard Dawkins, Gay Talese e, claro, Chico Buarque), um outro convidado chamou a atenção da cobertura da imprensa, especificamente pela capacidade de espantar o público e os interlocutores com suas respostas inusitadas a algumas das questões que lhe eram feitas. Com efeito, o escritor chinês Ma Jian parece ter contagiado os jornalistas não somente por algumas de suas frases serem incompreensíveis até mesmo para o tradutor oficial da mesa em que participou, como também pelo fato de querer viajar uma longa extensão do Brasil de táxi, apenas para conhecer um dos cartões postais do país.
Entretanto, caso a cobertura jornalística tivesse dado atenção aos aspectos mais próximos à obra do autor, os leitores brasileiros poderiam entrar em contato com um escritor que, entre outras coisas, transformou em literatura um dos acontecimentos mais relevantes do final do longo século 20, para ficar em uma concepção do historiador Eric Hobsbawm a propósito dos 1900. E essa é a informação que interessa: em Pequim em coma, o autor revisita a história recente da China, apresentando ao leitor de forma demasiadamente humana as condições de vida, as vicissitudes, os anseios e as frustrações de parte da sociedade chinesa, que tem de conviver com a ditadura de Partido Único, a despeito de ser considerada economia de mercado por países como o Brasil. Deste modo, em quase 700 páginas, Ma Jian disseca e dá à história um sentido a partir de sua extensa e fluida narrativa.
Considerado como um autor de vanguarda pelos críticos estrangeiros, Ma Jian utiliza um formato bastante peculiar para tecer sua narrativa. Explica-se. Ao condicionar o relato confessional do protagonista da obra, Dai Wei, às intervenções oriundas direto do inconsciente desse mesmo narrador, o romance envolve o leitor em um texto repleto de vida interior que segue sem outras interrupções mais formais — como a divisão por capítulos, por exemplo. Nesse sentido, já pelo estilo o autor se distancia de outros que pretendem escrever romances históricos.
Dessa maneira, por mais que o tema, nesse caso, também seja endereço, destino, objetivo final, o romancista não descuida da linguagem e da imaginação literária necessárias para uma obra de ficção. E a abordagem escolhida mostra-se pertinente uma vez que não exige do leitor um conhecimento aprofundado sobre a História política da China e de sua Revolução Cultural. Tais assuntos são mencionados pelo autor, que faz uso dessa matéria-prima, mas sua obra acaba por não depender de que a audiência esteja de antemão ciente de todos esses dados. À sua maneira, Ma Jian revisita a história recente da China sem pretender ministrar um curso ao público — ainda que indiretamente muitas informações relevantes sejam transmitidas.
Como conseqüência quase automática dessa decisão, e muito ao contrário do que se poderia temer, o escritor está distante de fazer maniqueísmos de forma pura e simples para defender sua posição política. Não se trata de proselitismo. É literatura. Pois até mesmo seu personagem central em boa parte da obra se apresenta como um sujeito que, sim, tem lá suas convicções, porém mesmo essas não são cristalizadas, sem reflexão ou crítica.
Em contrapartida, não são poucas as vezes em que Dai Wei, o protagonista, mostra ao leitor que suas opiniões ora contrastam, ora concordam com o regime que o autor critica veementemente em suas entrevistas. Exemplo disso é o fato de o personagem central ter raiva de seu pai no início do livro enquanto não o conhece em profundidade. Uma dezena de páginas depois, descobre-se que a impressão havia tomado o campo da percepção mais verdadeira, e uma espécie de ajuste de contas é feito entre ambos. Isso porque o pai de Dai Wei havia sido preso e torturado, e o livro começa justamente com a volta desse pai para a sua casa, onde, depois de tanto tempo, é um estrangeiro que vive como se ainda estivesse na prisão, posto que deixou de ser um músico importante para se tornar um pária político em uma sociedade cuja filiação partidária é uma questão de identidade. A vida familiar, por extensão, também se torna refém dessa condição.
Extrema fidelidade
Nesse ponto, observa-se que os personagens de Ma Jian vivem a história que realmente ocorreu na China daquele tempo. Pode parecer banal, mas o autor consegue reconstituir o cenário político e cultural do período com extrema fidelidade, a ponto de fazer com que o leitor de fato entenda de que forma os chineses reaproveitam objetos e alimentos que, em qualquer outro lugar do mundo, seriam jogados fora, como guimbas de cigarro e saquinhos de chá. Essa descrição de detalhes dá ao conjunto do livro um aspecto contextual bastante relevante para que se possa compreender as razões dos manifestantes que tinham sede de mudança política e cultural.
Assim, em determinados momentos, não há como escapar do discurso político que permeava a cabeça dos jovens da chamada “década perdida”. Faz 20 anos, mas, pelo que se lê, o idealismo ainda não havia se esvaído de todo, uma vez que os próprios estudantes tinham ciência da importância de seu papel junto à sociedade. “Doutorandos, chegou a hora de usar seus talentos”, no momento em que se conclamava a participação de estudantes na manifestação da Praça da Paz Celestial em Pequim, em 1989. Pode-se dizer que esse mesmo chamamento se estendeu à Polícia de repressão: “Vocês são cidadãos chineses, exatamente como nós. Por favor, camaradas, abram caminho”. Assim, no momento em que se declarava que a história chegava ao fim, como assinalou o pensador Francis Fukuyama num ensaio que foi mais citado do que compreendido, os estudantes chineses sentiam que era a sua vez, tal como a Revolução Francesa fizera 200 anos antes. Sim, o teor simbólico ajudou a tornar esse momento especial.
À medida que a narrativa avança, as interrupções passam a integrar a história de maneira decisiva. Descobre-se que Dai Wei acaba em coma no início dos anos 1990. Em uma leitura possível, é como se o personagem em estado vegetativo representasse o futuro dos jovens chineses que, desde aquele momento, estariam estagnados para os próximos anos. Reprimidos pela força policial, os jovens agiriam agora em busca de suas pulsões individualistas e teriam como objetivo elementar o maior acesso aos bens de consumo. O fracasso, nesse caso, se dá apenas no âmbito da vida social e política, na capacidade de reação e manifestação. No que se refere à preparação, a geração que ora está na agenda do dia, de certa forma, foi forjada naquele momento — e por isso é bastante preparada para atingir o topo da cadeia produtiva e de controle das operações do mundo dos negócios e da pesquisa científica, por exemplo.
Nesse sentido, uma espécie de divisor de águas faz com que os efeitos do coma sejam a apatia e anestesia permanente, visto que o universo acadêmico, longe de ser um rito, torna-se agora um celeiro para a preparação mecanicista, em vez de preparar o cidadão não apenas no âmbito intelectual e profissional, mas também na busca por seus direitos integrais da cidadania. O Estado forte venceu o desejo liberal, e a revolução, que parcialmente foi televisionada — haja vista a cena fundamental do jovem à frente do Tanque em 1989 — apenas reforçou o status quo que se perpetuaria no poder até hoje.
Para além de todas essas virtudes, é necessário salientar o fato de Ma Jian conduzir a história com verve literária que é, a um só tempo, lírica e sóbria. Lírica porque o autor busca o encantamento, o Belo, mesmo nas situações mais pueris e grotescas. É certo que nisso há certa vaidade na forma. Todavia, não há como negar que isso influencia decisivamente o conteúdo, que se torna mais sedutor aos leitores. De outra parte, a sobriedade vem da ausência de adjetivação nos trechos mais agudos da obra. Ma Jian, portanto, não quer que os estupros, as mortes e a ação totalitária do regime sejam mais cruéis em seu livro. É como se o romance para atingir a capacidade do verossímil não excedesse por completo o que já foi documentado. Por todas essas razões, considerar que o autor de Pequim em coma é apenas uma figura caricata na fogueira das celebridades de uma festa literária é uma visão no mínimo rasa por parte de certo jornalismo cultural.