Divórcio, de Ricardo Lísias, é um romance que, sob o calor de uma separação, discute o amor, a crueldade e a ética ameaçada pelo desamor e a falta de escrúpulos. O protagonista recém-casado encontra um diário da mulher que o coloca frente a frente com dolorosas revelações. Desencadeia-se aí a construção da trama, na qual o personagem narrador empreende uma busca de respostas sobre a esposa, sobre si mesmo e sobre o mundo que ambos habitam.
Conta com elementos biográficos de uma suposta “realidade” e, em cima desses elementos, elabora a tensão narrativa na qual vão se constituindo seus demais personagens. Apesar de o nome do personagem-narrador coincidir com o nome de capa do romance, ou seja, o nome do autor, o sujeito narrativo situa-se como o eixo problemático diferenciado na trama. Estabelece uma encenação de si e de sua intimidade através do texto. A partir do momento em que a escrita se efetiva, personagens e ação ganham vidas próprias e se constituem de outra natureza. São formados, em última análise, sobre o papel, de palavras e tinta: são elementos de uma narrativa literária. A relação autor-personagem acaba sendo íntima e pode se dar, muitas vezes, por parte do leitor curioso que busca também respostas e sentidos entre literatura e vida.
Entretanto, o material autobiográfico é apenas a matéria-prima dessa produção ficcional. Segundo a reflexão de Roland Barthes, mesmo em se tratando de uma autoficção, é importante que ela seja lida como um jogo de ficção, ou seja, como algo que pertence a um personagem de ficção, inventado ou reinventado por um autor de carne e osso. Inútil, portanto, a especulação sobre verdade ou mentira dos fatos narrados. Esta seria uma falsa questão. Muito mais rica é a leitura crítica que procura deter-se aos mecanismos de construção narrativa e da relação estabelecida por seus elementos. Eles se movimentam num jogo complexo que coloca em discussão aspectos de uma humanidade ferida, buscando se reerguer através da escrita de si e da leitura de seu tempo.
Ricardo Lísias, o personagem-narrador, tem como primeira imagem de si mesmo a de um homem morto: “Depois de quatro dias sem dormir, achei que tivesse morrido. Meu corpo estava deitado na cama que comprei quando saí de casa. Olhei-me de uma distância de dois metros e, além dos olhos vidrados, tive coragem apenas para conferir a respiração. Meu tórax não se movia”. Apenas a dor insuportável de quem vai perdendo toda a pele é que o remete para a condição de ser humano ainda vivo. O estado de torpor e delírio, causado pelo trauma por que passa, coloca em dúvida a “sinceridade” ou mesmo a “sanidade” desse “eu” em crise. “Tenho pontos obscuros na minha vida entre agosto e dezembro de 2011. Neles devo estar morto.” Alguma coisa morreu, é inegável. A morte simbólica de perdas irreparáveis é fato em separações abruptas como a de Ricardo Lísias. Mas o personagem vai mais além e incorpora dados de realidade palpáveis que radicalizam os efeitos dos danos causados no sujeito. As declarações de desamor da ex-mulher no diário arrancam-lhe a pele do corpo, roubam o ar dos pulmões e o ameaçam de uma morte definitiva. “Resolvi não falar que às vezes tinha alucinações e achava que estava dentro de um texto meu.”
Para suportar e buscar superar a desestruturação afetiva por que passa, lança mão de dois dispositivos emergenciais e definitivos: o treino para a corrida e a escrita compulsiva da experiência vivida.
O romance é estruturado em quinze capítulos a começar por Quilômetro um – um corpo em carne viva. A partir daí, seguem os demais com a numeração antecedida pela palavra Quilômetro, até terminar no capítulo Quilômetro quinze – octogésima sétima corrida internacional de São Silvestre. Correr e escrever, escrever e correr passam a ser as ações sobre as quais o personagem se debruça na busca de resgate da sua dignidade afetiva e de sua recuperação e superação física. É um homem ferido, que nesses dois aspectos se encontra dilacerado. “O corpo sem pele está mais exposto na rua. Tentei ficar quieto no cafofo, mas o medo de morrer de novo me deixava trêmulo e o suor, toda vez que eu deitava, incomodava a carne viva. O jeito é andar.” O corpo sem a pele dói, os brios e os sentimentos gritam. A premência da morte impulsiona para a vida, correr, superar limites, escrever sobre o vivido, sobre o sofrido para não esquecer, para não sucumbir. É imbuído dessa necessidade de registro que empreende a invenção de memórias. Em dado momento do livro, algumas fotos de família, lembranças do avô libanês e de histórias esparsas surgem, quase como digressões da trama central.
A leitura do diário da mulher, meses depois do casamento, revela, além da traição, o desprezo expresso por ela ao homem que a amou. O corpo em carne viva constitui-se enquanto alegoria da fragilidade desse sujeito exposto à chuva, ventos e olhares do mundo. Ferida aberta de uma intimidade exposta ao domínio coletivo. Espaço privado e espaço público são constituídos por porosas fronteiras que se intercomunicam, como o mundo interior do personagem, desprovido da proteção da pele do corpo está exposto e é atravessado pelo mundo exterior, suas intrigas, suas farpas e venenos.
Os quinze capítulos são cortados por fragmentos do diário da ex-mulher e, de certa forma, ajuda a construir a personagem. É bom lembrar que, apesar da concretude documental que o discurso do diário possa apresentar, a seleção dos fragmentos parte do ponto de vista do narrador-personagem. As escolhas dos depoimentos da senhora (X) é feita pelo protagonista, que põe em destaque a frivolidade e a crueldade que a caracteriza, aspectos que ele até ali desconhecia, movido pela paixão. Os trechos do diário vão pouco a pouco tirando a máscara da mulher que se apresenta: “Eu gosto de ser casada com um escritor. É só esconder certas coisas e pronto. Eu sou uma mulher atraente, não tenho dificuldade de achar amantes, nunca tive. (…) Sou a maior jornalista de cultura do Brasil”.
Muitos desses fragmentos se apresentam diferenciados da voz do narrador tanto do ponto de vista gráfico quanto do estilístico. É um discurso simplório demais para ser escrito pela maior jornalista de cultura do Brasil. Aparecem repetida vezes mesclando o texto narrativo, repetição que fere, mas como um ritual de sacrifício expurga, facilitará mais tarde a cicatrização. “O Ricardo é um retardado, não tenho dúvidas, mas mesmo assim é um escritor, o que me preserva de certas coisas.”
Os trechos do diário vão mostrando aspectos mais íntimos da senhora (X) e ajudam o narrador na sua construção da ilustre desconhecida que escolheu para casar: “Minha ex-mulher é um ser narcísico inteiramente doentio, o que a impede de enxergar qualquer coisa além de um nome em jornais e revistas e vários cinquentões semipoderosos na cama”.
Se por um lado, as declarações do diário deixam Ricardo em carne viva, por outro, o seu romance crava as unhas numa ferida aberta na sociedade brasileira pela hipocrisia de um determinado setor de classe, que o narrador denomina como a elite do nosso país. O reboliço está formado e ameaças de processos e coisas do gênero passam a ser dirigidos ao escritor-personagem. Ele responde apenas com uma discussão metaficcional, na qual avalia o seu fazer literário e o produto do seu trabalho. É, nesse sentido, bem racional e detalhista, tentando adiantar-se, desnecessariamente, às críticas que possam vir. “Divórcio é um romance sobre o trauma.” Quanto às ameaças da senhora (X) está tranquilo: “Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance”.
A largada na corrida de São Silvestre e o ponto final no seu livro trouxeram ao personagem força física e equilíbrio emocional necessários para virar a página e deixar para trás a dor tão aguda da separação traumática. Para Ricardo Lísias, autor e personagem, “A arte é uma possibilidade de resistência”. Bem que ele “gostaria de contar tudo”, mas esbarra sempre com a impossibilidade de traduzir em palavras toda dor, toda indignação, todo seu amor. Empreender a travessia já é uma vitória sobre o silêncio e a morte. Afirma no romance: “Acredito que a arte deva desafiar qualquer tipo de poder. Divórcio é a minha profissão de fé contra essas neoditaduras”. E a literatura, consequentemente, apesar de todas as suas limitações, é um canal para soltar o grito, reconstruir uma nova pele, nova proteção, recobrar as forças e tocar a vida.