Raduan Nassar escreveu Lavoura arcaica, romance lançado em 1975 pela José Olympio, em apenas cinco meses. Trabalhou em estado de frenesi, doze horas por dia, fugindo não só das aflições provocadas pelo desemprego, mas também, e ainda, do luto nunca esgotado pela perda da mãe, Chafika, falecida em 1971.
Escrito em grande desassossego, com uma impaciência — e, em conseqüência, uma entrega — rara na literatura brasileira contemporânea, Lavoura arcaica não deixa de ser, também, um desabafo, um livro movido pela indignação, pela repulsa, pela aversão. Luta feroz contra a família e seus laços petrificados, mas também contra a religião e a imobilidade de seus dogmas. Um livro escrito, portanto, contra as idéias fixas e que, por isso, depois de três décadas, em nosso mundo cada vez mais dogmatizado, torna-se ainda mais atual.
“Eu berrava e soluçava dentro de mim, sabendo que atirava numa suprema aventura ao chão, descarnando as palmas, o jarro da minha velha identidade elaborado com o barro das minhas próprias mãos”, o narrador, André, um homem em estado de dolorosa metamorfose, diz em dado momento do sétimo capítulo. Com isso, ele sintetiza a agonia que perpassa, que rege a escrita de Raduan Nassar.
Apesar do tom rebelde, o livro recebeu, em 1976, e graças à influência do escritor católico Alceu Amoroso Lima, que presidia a comissão julgadora, o prêmio da Academia Brasileira de Letras. Mereceu, ainda, o Jabuti, da Câmara Brasileira de Letras, e uma menção honrosa da prestigiada Associação Paulista de Críticos de Arte. Mas será que esses prêmios dão conta, de fato, da radicalidade do romance de Raduan Nassar? Será que premiar é, sempre, entender?
“Onde eu tinha a cabeça?”, o narrador André se pergunta, perplexo com os pensamentos que o atravessam, e que são a matéria-prima do livro. Lavoura arcaica é, de fato, um romance embriagado — isto é, com a cabeça fora do lugar — ou, pelo menos, um livro que reproduz a excitação da embriaguez. O relato de um êxtase, feito em jorro, como um vômito, no qual André expele suas feridas mais repulsivas. Desabafo contra o bem viver e seus rituais de costumes estáveis e restrições. Bem viver sob o qual o homem verdadeiro, que é sangue e instabilidade, simplesmente desaparece.
Em um redemoinho de pensamentos, André recorda sua vida, a desestruturação da família, a relação incestuosa com a irmã, Ana, a fuga de casa que, se o salvou, e num resultado inesperado, o devolveu à família também. Por que ele fugiu? O pai sentava-se à mesa e obrigava os filhos a ouvir seus duros sermões. “Que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa”, André descreve, “o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo”. A fala de André, o filho desgarrado, ao contrário, é presidida pelo imponderável — por aquilo que não se pode pesar, que não suporta uma medida, aquilo que o mundo das regras não pode conter. Os sermões do pai acentuam sua ânsia de liberdade. Da rigidez das palavras, numa inversão, surge o tufão.
Na fala do pai, as referências bíblicas fornecem o lastro, enfatizando a ligação entre a forma familiar e o dogmatismo religioso. São pensamentos simples, mas tenebrosos: “Ai daquele que brinca com fogo, terá as mãos cheias de cinza”, ou “ai daquele que se deixa arrastar pelo calor de tanta chama”. Fisgada pela escrita de Raduan, esta fala cerimoniosa, mas cruel, se deixa expor em todo o seu escândalo. É a fala da ordem, que produz, em vez de vida, asfixia. A fala da morte.
“O pai, ao ler, não perdia nunca a solenidade”, o narrador rememora. Quer dizer: permanecia preso à ênfase, à certeza e à arrogância. André foge de casa para escapar da sufocação que esta fala pétrea estabelece. O estado de claustrofobia, que oprime, mas ao mesmo tempo leva o narrador a falar, é um pouco o estado de pressão psicológica, de abafação, que caracteriza a avara literatura de Raduan. Palavras, poucas palavras, concentradas em intensidade máxima. Um pequeno livro de 194 páginas que, apesar disso, parece nunca terminar.
Disso se conclui que Lavoura arcaica é um romance sobre o tempo. “O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo”, André diz. “O tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros”. Mais que o tempo: sobre a imobilidade (o vácuo), na qual o tempo se torna uma gosma que, em vez de nos fazer avançar, nos retém. “O tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas”, André diz. O tempo, que faz a máscara rosada dos bebês e a face sensual das mulheres, mas também o molde enrugado dos velhos e o rosto gelado dos mortos.
Faminto
Ana, a irmã, é também fisgada em uma fenda do tempo. “Foi este o instante: ela transpôs a soleira, me contornando pelo lado como se contornasse um lenho erguido à sua frente, impassível, seco, altamente inflamável”, André rememora. Quebrado, o tempo revela o impossível. Depois, ele consegue dizer ao irmão, Pedro: “Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome”. Nesta rachadura, em que a perfeição da família, sua estabilidade e coesão, se partem, se estilhaçam, desponta a rebeldia. “Deitado na palha, nu como vim ao mundo, eu conheci a paz”, ele diz. O Eu, com sua força insólita, surge (é soprado) da pedra. Nada mais bíblico — embora não seja da Bíblia que se trate.
Quando enfim retorna a casa, André reencontra um pai que, apesar de tudo, se vê obrigado a saldá-lo. Que, mesmo com repulsa, o quer de volta. “Abençoado o dia da tua volta! Nossa casa agonizava, meu filho, mas agora já se enche de novo de alegria.” A rebeldia, na ausência que deixa atrás de si, se revela alegria. Tudo muda e nada muda. “Na entrada da copa, parei: cioso das mudanças, marcando o silêncio com rigor, estava ali o nosso antigo relógio de parede trabalhando criteriosamente cada instante”, André relata. Um relógio não muda — por mais que mude o mundo, um relógio continua, só, a avançar. Também o pai, ao ouvir o filho que voltou, se perturba. “Você diz coisas estranhas, meu filho. Ninguém deve desesperar-se, muitas vezes é só uma questão de paciência.”
O filho lhe conta, então, a história de um faminto que, sem ter como matar a própria fome, dobra o corpo sobre si mesmo para morder a ponta dos pés. Com os pés cheios de feridas, ele passa a odiar o mundo. Mas é assim que sobrevive. Este homem é André. Um homem que não se arrepende do que sofreu, embora odeie o que sofreu; que não se arrepende do que fez, de sua fuga, embora volte para casa um dia. “Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade”, ele diz.
É nesse fio perigoso, entre a desordem absoluta e a ordem secreta que a sustenta, que Raduan Nassar escreve. Assim escreveu Lavoura arcaica, e por isso o livro, embora não dê solução a nada e só perturbe tudo o que temos, engrandece o que temos. Função da literatura: descortinar novas maneiras de ver o mundo. Outra função: desestabilizar, desarranjar, desassossegar. Raduan Nassar as persegue e as cumpre, uma a uma. Leva sua luta até o fim.
Em uma “Nota do autor”, escrita ainda para a primeira edição de 75, Raduan nos fornece uma chave de seu livro: “Na elaboração deste romance, o autor partiu da remota parábola do filho pródigo, invertendo-a”, explica. Romance, neste sentido, antibíblico — já que o filho pródigo, se termina por voltar a casa, não é porque cedeu aos apelos do pai, ou às promessas de paz. “Quero te entender, meu filho, mas já não entendo nada”, o pai lhe diz. Ao que o rapaz responde: “Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido”.
Avareza
Também Raduan Nassar parece ser um escritor empurrado — açoitado mesmo — pelas palavras. Suas e dos outros. Escrupuloso, na mesma nota ele faz questão de apontar, ainda, alguns enxertos de frases, ou versos, que tomou emprestados de grandes escritores. Reflexos do grande leitor no grande escritor. São eles Thomas Mann, Novalis, Walt Whitman, Jorge de Lima, André Gide e Almeida Faria — nomes que desenham, na verdade, uma descendência. Nada desprezível, aliás. A advertência, nem assim, ajuda a explicar o romance. “Se sou confuso, se evito ser mais claro, pai, é que não quero criar mais confusão”, o filho diz. Eis a estratégia literária de Raduan: em vez de simplificar para, na ilusão do entendimento, apenas esconder, em vez disso, ater-se à dificuldade das palavras, a sua impotência, revelar o quanto do mundo sempre lhe escapa.
Raduan Nassar escreveu pouquíssimo depois de Lavoura arcaica. O livro seguinte, Um copa de cólera, de 1978, tem apenas 85 páginas, dentro das quais, num estilo elétrico, ele desvela uma relação de amor. Menina a caminho, reunião de cinco relatos brevíssimos, de 1994, não chega ao todo a 85 páginas também. E depois dessas 364 páginas, Raduan optou pelo silêncio — silêncio que, de certa forma, é ainda mais perturbador do que os três livros que escreveu.
O segredo de Raduan parece estar na avareza — ainda que, no extremo, ela o conduza à desistência e ao silêncio. Cada frase, cada idéia, cada palavra atinge tal intensidade que, para suportá-las, o leitor precisa conter sua avidez. Precisa ler com delicadeza e parcimônia — como se lesse um poema. Grandes escritores — pensemos em um Machado, em um Eça, em um Thomas Mann — escreveram, e atingiram estados de grande elevação, agindo por acumulação. Em Raduan, ao contrário, como ocorre em uma sala inteiramente vedada, é do pouco, do quase nada que aparece o choque.
Em Lavoura arcaica, é na relação incestuosa com a irmã, Ana (nome que, em árabe, corresponde ao pronome Eu), que André explode seus laços com a família. Nesse aspecto, ele nos faz lembrar de Teorema, o clássico desaparecido do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Filme em que a chegada de um visitante inesperado desestrutura a vida de uma família burguesa. O jovem desconhecido tem relações sexuais com a empregada Emilia, com o filho Pedro, com a mãe Lucia, com a filha Odete e, por fim, com o próprio pai, o industrial Massimo. Depois se vai — mas o que fez, ou que levou a família a fazer, ficará ali para sempre.
Também a partida de André, mesmo antes de acontecer, já convulsiona a família. Desastre que o narrador anuncia em uma confidência ao irmão: “Não tinha ainda abandonado a nossa casa, Pedro, mas os olhos da mãe já suspeitavam da minha partida”. Teorema é de 1968, sete anos antes do lançamento do livro de Raduan. Não é um exagero especular: teria Raduan Nassar visto o filme de Pasolini? Mais uma coincidência inquietante: nascido em 1922, Pasolini foi assassinado no final de 1975, o ano em que Lavoura arcaica chegou às livrarias. Talvez sejam apenas coincidências, nada mais. Sinais, ainda assim, de uma década feroz, a dos 70, quando a arte e a literatura não mediam esforços para emparelhar com a vida.