Depois do sacrifício

Romance de Joyce Carol Oates trata do sofrimento de se perder alguém que se ama e das várias facetas do luto
Joyce Carol Oates por Oliver Quinto
01/01/2025

Morte.
Na primeira cena de Noite. Sono. Morte. Astro., de Joyce Carol Oates, vemos Azim Murthy, um médico indiano, sendo espancado pela polícia no acostamento de uma estrada nos Estados Unidos. A razão é tão simples quanto inaceitável: o médico foi parado graças à cor escura de sua pele, e espancado pelos policiais.

John Earle McClaren (mais conhecido como “Whitey”), que havia sido prefeito da cidade muitos anos antes, passa pela mesma estrada, e ao ver o ataque para ao lado. Tenta conversar com os policiais. Acostumado com seus dias de prefeito, desce de seu carro sem medo de expressar sua indignação. Quer exigir que parem de torturar o homem indefeso, caído. Os policiais não dão atenção a suas palavras. Antes que consiga se fazer entender, Whitey é atacado, espancado, atingido por armas de choque. Ele perde a consciência e é levado para o hospital, onde logo morrerá.

Essa descrição é o elemento principal da maioria das sinopses e resumos do romance de Joyce Carol Oates — e faz sentido que seja. É o primeiro acontecimento do livro. É o evento incitador, aquele que motiva a obra como um todo. Ainda assim, pode causar uma expectativa completamente inadequada.

É bem possível que o trecho deixe você com a impressão de que o livro se aprofunda em questões políticas complexas. Que o tema central da obra seja a violência policial, o racismo, a xenofobia. Nada disso é verdade. Não quero dizer que a narrativa ignore essas questões ou não se interesse em absoluto por elas — mas sim que estão longe de ocupar um lugar central na obra.

Esse é um romance sobre Jessalyn McClaren, esposa de Whitey, e a difícil experiência de uma mulher que perde o marido com que foi casada desde a juventude — um homem que ela amava e que a amava profundamente. Jessalyn, já em idade avançada, precisará aprender a viver de outra forma.

Sono.
Se precisasse apontar uma falha no livro de Oates — e em se tratando de uma resenha, eu preciso —, esta ganharia o meu destaque. O livro, em vários momentos, cria expectativas que simplesmente não são atendidas. Isso não quer dizer que a história que temos não vale a pena, mas sim que a expectativa por uma outra história acaba por colorir nossas impressões. A maneira como a autora começa o romance e desenvolve algumas de suas linhas prejudicam ativamente a apreciação de alguns elementos do enredo, porque o leitor acaba por relativizar os acontecimentos num primeiro momento.

A cena inicial, o ataque brutal e racista cometido pela polícia, funciona como um precedente, uma promessa, e o leitor espera que essa promessa seja cumprida. Enquanto espera um emocionante conflito entre a família do morto e a polícia, o leitor tende a subvalorizar os momentos de introspecção da viúva. Se o leitor espera aquele conflito, a reação de Jessalyn e dos cinco filhos do casal acaba por parecer prática, como se a escritora estivesse apenas nos mostrando a personalidade de todos os envolvidos para que, quando a disputa entre essa família e a polícia ocupar tribunais e jornais, já os conheçamos, já tenhamos como imaginar e empatizar com suas reações. Mas nada disso acontece. O foco que esses personagens recebem já é, em si, o tema central. A violência policial e o evento que causou a morte de Whitey ocupam apenas algumas dezenas de páginas de uma obra de quase 700, chegando a um final extremamente realista — embora um tanto decepcionante.

Por isso é tão importante essa consciência. Se você começa a ler o livro pensando que o foco em Jessalyn e seus filhos é apenas uma espécie de apresentação, pode acabar subestimando a importância dessas “pequenas” cenas iniciais — o que seria um desperdício, considerando o cuidado dedicado a elas. E se é verdade que Oates é um tanto dramática em certos pontos, suas descrições são belas, e as personagens são apresentadas numa terceira pessoa feita com extrema habilidade, tão próxima dos pensamentos e emoções dessas personagens que não as conheceríamos nem um pouco melhor se elas nos contassem suas histórias.

Outra expectativa que pode afetar a leitura diz respeito à maneira como Oates estrutura o início do livro. Certamente para nos apresentar os cinco filhos do casal McClaren, a autora os tem como foco de diversos capítulos iniciais. Nas primeiras cem páginas, pode-se ter a impressão de que eles terão um papel tão grande no romance quanto Jessalyn, mas esse também não é o caso.

Embora sejam frequentemente focalizados pela narrativa e tenham muita importância, os irmãos são, na sua maioria, menos profundos e interessantes que a própria Jessalyn. Hesito em usar a palavra “formulaicos” porque Oates consegue se aprofundar na personalidade deles de uma maneira que faz com que pareçam reais, mas certamente seu ponto de partida é bastante comum. Temos Thom, o primogênito, homem de família tradicional e herdeiro da posição do pai na empresa; Beverly, a belíssima líder de torcida, que se casa cedo e tem um casamento infeliz; Sophia, a quarta filha, cuja inteligência deixa os pais orgulhosos e os irmãos mais velhos desconfortáveis; Virgil, o filho caçula, artista cujo estilo de vida é desaprovado pelo pai. Apenas Lorene, a filha do meio, uma diretora de escola antissocial e autocentrada, parece fugir um pouco ao típico. Apesar disso, é interessante a maneira como Oates consegue encontrar alguma profundidade nesses personagens, de tal forma que, a certo ponto, senti que os conhecia bem, e se achei que poderia prever algumas de suas ações não é porque seriam óbvias, mas graças à qualidade de sua apresentação.

Ainda assim, é verdade que as histórias dos filhos são secundárias à de Jessalyn. Em alguns casos, a narrativa parece se aprofundar em alguns deles não porque se interessa por suas histórias, mas para mostrar como se relacionam com a mãe, para que o leitor entenda suas reações às decisões que Jessalyn toma após a morte do marido. O resultado é que, mais uma vez, expectativas falsas podem se formar. No início do livro, os irmãos têm tanto espaço e sua história é desenvolvida tão cuidadosamente, que começamos a esperar que o romance continue dividindo o espaço igualmente entre mãe e filhos, mas não é o que acontece. Se você espera ver as viagens e a vida de Virgil numa comunidade, as dificuldades de Thom guiando a empresa de seu pai, ou o casamento difícil de Beverly, passará centenas de páginas sem nenhuma notícia sobre esses irmãos. Sofia praticamente desaparece num determinado ponto, e quando retorna, ficamos sabendo que elementos importantes de sua história pessoal já foram resolvidos “fora da tela”, não vemos acontecer. E confesso que achei uma pena — era a minha personagem favorita.

O foco em Jessalyn transforma sua história no ponto forte do romance, e faz da viúva uma personagem infinitamente mais interessante e profunda. A tentativa de dizer o suficiente sobre os filhos, mas não tanto que eles se tornem centrais, faz com que suas próprias vidas ganhem resoluções insatisfatórias, por vezes rápidas ou fáceis demais. Daí a decepção provocada pelas expectativas que criamos no início do romance, momento em que conhecemos tão bem cada uma dessas pessoas. Quando os irmãos McClaren retornam, e mesmo quando surpreendem, nunca parecem estar agindo sem lógica ou desrespeitando a personalidade que conhecemos até então, e é decepcionante se interessar por uma personagem para em seguida não receber notícias dela por centenas de páginas — até que finalmente ela retorna de maneira rápida e um tanto conciliadora. A exceção é Lorene, com quem acontece o contrário: quase não aprendemos nada a seu respeito no início do livro, e de repente ela ganha alguns capítulos mais próximos do fim, com uma conclusão surpreendente e um tanto estranha. A história de Lorene também é interessante porque nos mostra um pouco mais sobre a narradora. Na minha leitura, a personagem toma atitudes bastante reprováveis, e de fato, ela é julgada pela narradora como nenhuma outra. Embora Oates tenha escolhido usar o ponto de vista da personagem narrada na maior parte do tempo, decidiu alterar isso aqui, evitando que a voz narrativa assumisse o ponto de vista por vezes mesquinho e cruel de Lorene.

Antes de continuar, acho importante ressaltar uma coisa: escrevi acima e repito que, se precisasse apontar uma falha no romance, seria a criação de expectativas, e acredito que a maior parte do que apontei aqui é fruto desse único problema. Se um livro ensina ao leitor como quer ser lido, Noite. Sono. Morte. Astro. falha nesse aspecto. Há muitas peças no ar: o acontecimento brutal que inicia o livro, o envolvimento da polícia, o médico indiano, o pai da família que passa algum tempo no hospital antes da morte, cinco filhos e a esposa — mas como já indiquei, de todas essas linhas uma única se destacará: a viúva Jessalyn McClaren.

Noite.
Jessalyn é a personagem central e mais bem acabada do romance. Seu grande conflito é a perda do marido que amava, a experiência de se tornar uma viúva, a lenta recuperação de sua vida.

Jessalyn não é uma mulher jovem — mas era quando se casou. A voz do marido era tão presente em sua vida que mesmo depois da morte de Whitey, ela continua ouvindo suas opiniões, como se ele estivesse a seu lado, conversando com ela como uma espécie de manifestação concreta de sua recusa em aceitar sua morte.

Oates, é importante notar, não fala de Jessalyn como uma viúva só no sentido prático da palavra. Muitas vezes procura mostrar que, após a morte do marido, as pessoas ao redor de Jessalyn passaram a tratá-la como se sua personalidade se resumisse ao fato de que ela é uma viúva. Seus filhos demonstram tanta preocupação que acabam, em certa medida, invadindo seu espaço. Julgam a todo momento as maneiras como ela processa esse luto, mas também as decisões que toma conforme começa, lentamente, a sair dessa etapa.

Grande parte dessa relação também ganha interesse porque Oates mostra como o casamento, por mais amoroso que fosse, limitava Jessalyn enquanto mulher, em seus desejos e personalidade, que acabavam por ser moldados por sua relação com o marido. Ela, depois de deixar tantos dos seus interesses de lado para cuidar dos filhos e levar seu casamento adiante, após a morte do marido mostra um lado de si que os filhos não conheciam. Certos acontecimentos levam ao aflorar de interesses que ela, enquanto casada, não demonstrava — coisa que eles encaram como problemática. Como a mãe pode fazer isso? Aquilo? O luto só pode ter afetado sua cabeça.

E é nesse conflito que o livro de Oates cresce. A autora consegue mostrar o passado de Jessalyn de maneira sutil, mas eficiente. A redescoberta de livros de poesia que ela teve quando jovem. Um interesse pela arte que não tivera espaço para crescer, mas era constante e agora pode aflorar. Diversos sinais de uma vida interior que nenhum dos filhos conhecia justamente porque esquecida ao longo do casamento e de sua criação. Desejos e interesses que não foram apagados por imposições ou força, mas pelas exigências de um casamento e dos cinco filhos que vieram com ele, e que a personalidade prestativa e caridosa de Jessalyn colocou acima dela mesma.

Astro.
Em 16 de junho de 2024, um casal formado por uma pessoa cis e uma pessoa trans foi assediado por dois homens, que ameaçaram matá-las no interior de um ônibus em Curitiba. Oziel Branques dos Santos foi assassinado a facadas ao tentar defender o casal.

A lembrança dessa história foi um dos motivos que despertaram meu interesse pelo livro de Oates. Como não pensar no ato heroico de Oziel ao ler sobre Whitey?, outro homem que encontrou a morte ao defender uma pessoa desconhecida de um ataque brutal e injusto, motivado pelo preconceito?

No caminho que faço para a universidade, há um adesivo com o nome de Oziel. Foi colado num poste durante a 7ª Marcha da Diversidade em Curitiba, evento que o homenageou. Me lembro do adesivo original, que vi ainda em 30 de junho, dia em que foi colocado ali — mas está completamente diferente. Exposto ao sol e à chuva, as cores do arco-íris desapareceram. É difícil discernir o nome de Oziel, que se desbotou quase por completo. Como disse John Donne, a morte de qualquer pessoa faz de nós menores porque estamos inseparavelmente envolvidos com toda a humanidade, e quando os sinos tocam anunciando uma morte, quem morreu foi uma parte de nós. Oziel, quando se dispôs a enfrentar uma situação perigosa para ajudar aquelas pessoas, demonstrou entender isso no mínimo tão bem quanto o poeta inglês. Sua morte faz de todos nós um pouco menores.

Falar sobre o livro de Oates é uma oportunidade de relembrar esse sacrifício terrivelmente real, que nesses tempos conturbados parece ter acontecido há muito. A literatura, como outras artes, também é memória. Ela reflete e reimagina, faz com que a gente relembre e repense. E se o livro de Oates não se aprofunda em questões políticas, ainda assim nos leva a refletir sobre elas, a pensar sobre um mundo em que alguém pode ser morto simplesmente por lutar contra o preconceito, mesmo que não pertença ao grupo atacado.

E acima de tudo, o romance nos mostra o sofrimento de se perder alguém que se ama, e as várias facetas que o luto pode ter. Só nos resta desejar força à família de Oziel, cuja morte ainda é tão recente, e a todas as famílias que perderam alguém graças a qualquer tipo de preconceito.

Noite. Sono. Morte. Astro.
Joyce Carol Oates
Trad.: Débora Landsberg
HarperCollins
656 págs.
Joyce Carol Oates
Nasceu em Lockport (Nova York, EUA), em 1938. Suas obras já lhe renderam diversos prêmios, entre eles o National Medal of Humanities e o National Book Award. Também foi ganhadora do Prix Femina, em 2005; do Los Angeles Times Mystery/Thriller Award, em 2018; e do Jerusalem Prize for the Freedom of the Individual in Society, em 2019. Ela foi professora da Universidade de Princeton e é membro da Academia Americana de Artes e Letras desde 1978.
Bruno Nogueira

É autor de Grito distante (romance) A síndrome do impostor (contos).

Rascunho