Como matei minha mãe. Você leria um livro com este título, em uma capa muito vermelha em tamanho 16 x 23, apesar de a autora ser bem conhecida e séria? Fui incumbida desta resenha para o Rascunho e, ao receber a obra, me senti obrigada a cobrir a palavra “mãe” do título com uma fita adesiva, pois minha mãe de quase 95 anos, às vezes, passa por aqui e poderia ver o livro; e, quem sabe…, achar que era leitura de autoajuda. Esta historinha caseira mostra ousadia na escolha do título (comentado dentro do romance), já que o matricídio consta de todos os pecados capitais; é preciso coragem — essa a intenção —, mesmo que apenas numa capa.
O fato é que a instigante obra insere-se como tema central no enfrentamento de que se ocupa a psicanálise sobre a “mãe tóxica” (#MeToMãeTóxica) — adjetivo este bem moderninho. E o romance de Leirner é atravessado por interpretações de mãos dadas com a psicanálise. Às vezes isso pesa numa obra ( interpreta-se um personagem como se estivesse num divã), mas aqui, me parece, traz, com a dor da exposição, a atenuante necessária para justificar o assassinato emocional de mães perversas e egocêntricas.
Várias histórias femininas contemporâneas tratam das relações entre mães e filhas. Algumas mães são terríveis (veja-se o impressionante Uma duas, de Eliane Brum); outras, amorosas e absolvidas (veja-se O lugar escuro, de Heloisa Seixas). Ou seja, desde que mulheres passaram a escrever melhor e mais livremente (a partir da segunda metade do século passado), o tema avó-mãe-filha tem sido revisitado e aprofundado como especularidade e autoconhecimento.
Em Como matei minha mãe, Sheila Leirner cria uma narrativa ambígua (porque aparentemente sincera) em tecido de cunho autoficcional. Aliás, a escrita de autoficção tem produzido coisas interessantes. Narrando em primeira ou terceira pessoa, vários autores têm investido na perturbadora estrutura de certos romances contemporâneos. O filho eterno, de Cristovão Tezza, A resistência, de Julián Fuks, até O irmão alemão, de Chico Buarque, estão entre os vários bons resultados.
Narrativas paralelas
Aqui, a experiente Leirner optou por criar duas narrativas que seguem paralelas e alternadas. Uma das histórias vem em itálico (a autoficção escrita por Berta, filha de Ema, nonagenária que acaba de falecer num residencial sênior em Miami). A outra, que lemos em fonte regular (suposta biografia escrita por Shelly — que, por sua vez é autora do par Ema e Berta e filha de Glica, que, aos 94 anos, vive num pequeno apartamento em Miami). As mães das escritoras estão em Miami e as filhas, já de meia idade, vivem em Paris.
O gatilho de Ema para escrever sua história é acionado pela morte da mãe, num residencial de idosos, e aí começa a digressão (catarse?), que se encerra depois do enterro e da volta a Paris. Shelly escreve a obra em Paris, depois de visitar Glica, que enviara um e-mail exigindo a presença dos filhos: “Shelly e Terence, preciso ver vocês, amanhã será tarde demais”.
Dessa forma, quatro irmãos seguem para Miami, dois para enterrar, dois para lidar com a ameaça de suicídio da mãe. É claro que a perversa longevidade delas amplia o relato e estende o romance. A história de Shelly, “romance escrito em dois meses” após essa viagem, seria o romance que temos em mãos, Como matei minha mãe.
Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um e-mail do residencial sênior: “A sua mãe faleceu. O enterro será amanhã. Nossos sentimentos.”
(em itálico, Berta)
“Dessa forma começa Como matei minha mãe, romance que levei apenas dois meses para escrever, de volta a Paris, depois do anúncio que nossa mãe Glica Preisner, perfeitamente viva aos 92 anos, fez a mim e a meu irmão Terence”. (Shelly)
Tal malha narrativa mostra ao leitor que as duas histórias são uma só; muito seria invenção, mas “pode” conter a vida da autora real (cujas relações familiares o leitor desconhece, a despeito de a família ser tão célebre). Temos uma narrativa dentro de outra e ambas as escritoras escreverão a própria biografia iluminadas pelo sofrimento.
Assim, a obra de Leirner é análise e confissão — intensificada pela vicissitude diante dessas mães tóxicas e egocêntricas, talvez portadoras de distúrbios (aí a presença oportuna da psicanálise na obra).
Com ambas as narrativas precedidas de introduções das respectivas autoras, Leirner duplica o que é unificado nela mesma. Daí, o difícil para o leitor (talvez para nós, leitoras e filhas) é manter instalados os horrores morais e éticos das mães apenas na ficção ( Como essa mãe fez isso? É autobiografia ou ficção?).
Leitoras
Tais representações e cenas, poucas risíveis, outras muito abjetas, poderiam ser reconhecidas em nossas mães ou — pior — em nós mesmas. A autora escreve para si ou para que todas nós? — é inevitável a pergunta. E isso, por certo, reduz um pouco o romance a leitoras. Citando Camus, [“todo homem que não chora no enterro de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte]”, Sheila faz o contrário:
Para mim, toda pessoa que “mata” um progenitor algoz, encontra a salvação. O “estrangeiro”, esse herói e anti-herói simultaneamente, erra solitário, não obedece às regras a aceita morrer por um só motivo: ele se recusa a mentir. Como eu. O oposto de minha mãe Glica Preisner e do personagem Ema Kreisler, que não fizeram outra coisa senão mentir a vida inteira. Para si mesmas e os outros.
Como matei minha mãe quer matar a mãe algoz, tornando ostensivas as ações que nos destroem e reconstroem depois de matá-las simbolicamente. Aqui, são mães judias, o que tem grande peso na narrativa. Abandonadas por ex-maridos, são ex-milionárias mimadas que tudo perderam. Este passado, entretanto, deslumbra um pouco as filhas, sobretudo a personagem Berta, que é bem suscetível a esse mundanismo. Não chega a passar despercebido, na narrativa, o efeito comparativo de lamúria e comparação.
Se eu tivesse tido a sorte que teve a nossa mãe, e minha casa possuísse tamanho e condições de receber os meus filhos, garanto que estaria aberta incondicionalmente, 24 horas por dia, sete dias por semana, com muito amor em cada minuto, assim com a casa de Terence está para os filhos dele.
Uma coisa é certa: depois de ler esta obra, o leitor entende que elas não morrerão — estão mais vivas do que nunca no sofrimento dessas filhas. Para nosso espanto, porém, estas as obedecem, toleram suas perversidades, aceitam roubos intelectuais e financeiros, minimizam a concorrência intelectual e o desprezo pelo sucesso das filhas. Ou será que revelar tudo isso as faz facilmente julgadas por nós, leitores? Nem o fato de serem sustentadas aumenta sua humanidade — claro que olhando sob rigorosos valores morais da tradição patriarcal a que Camus e elas se subordinam.
A narrativa de Berta atravessa os anos 1930 e a narrativa de Shelly é contemporânea, com whatsapps e-mails, citando pandemia e o Brasil contemporâneo (até Jair como sósia mental de Glica, o que é ruim para a obra); isso cobre, pela longeva idade delas mesmas, o tempo da narrativa.
Não há novidade estilística na construção das frases, na estruturação do tempo e da ação; o romance quer mesmo matar, narrando, as Emas e Glicas. Incomoda um pouco a criação de rodapés explicativos, e a pouco rigorosa revisão da obra, com deslizes de regência, concordância e virgulação.
Outro incômodo é que, em vários momentos, a autora atribui às filhas que narram uma onisciência impossível, capturando cenas e conversas que não presenciaram nem lhes foram narradas. (Vamos atribuir a desfocagem narrativa à autoficção.)
Ainda assim, a coragem da autora de quebrar os tabus e o mutismo faz do livro um interessante modo de pensarmos as feridas silenciosas que se revelam em nós. Não creio que a obra ascenda a um exercício estilístico peculiar ou ideológico, mas incomoda. E muito. A autora consegue nos mobilizar.