Depois das certezas

Nos poemas-relato de Jussara Salazar há um cortejo de anjos, santos e almas assombradas
Jussara inventa, reinventa, joga com as palavras
01/10/2004

Livros são espelhos. O ato de ler é, quase sempre, o ato de projetar perspectivas, visões, intenções, pensamentos sobre um texto. A literatura mediana é opaca, nela se lê só o que é dito, e nada mais. A literatura de qualidade é especular, nela mergulhamos não para topar com uma superfície, mas para nos afogar. Ela desafia, e não se cansa: nos pede mais e mais interpretações, mais e mais perguntas. Não tem superfície, mas profundidade. E exige a nossa ousadia.

Essas idéias me vêm à mente durante a leitura de Natália, novo livro de Jussara Salazar. Um livro delicado, escrito com a elegância dos contos de fadas, em que prosa e poesia se mesclam para servir às perguntas que Jussara não pára de fazer. Livro que toca as profundezas, mas que, como medida de humanidade, se apega ao humor, expresso já na nota primeira, registro da história da tia-avó Natália, que fugiu com um tenente e nunca mais voltou.

Os poemas narrativos de Jussara lidam com temas difíceis e os pegam no contrapé. Promovem o desequilíbrio, invertem nossas crendices. A morte, por exemplo, é tomada como um evento cheio de repercussões e, portanto, como parte, elemento da vida. “Um morto é quem mata o outro morto”, está dito em Redemunho. No mais, estamos todos vivos. Em A porta dos sonhos: Luce Bakun, ela, diante do artista morto, deitado e com o corpo coberto de borboletas, reflete: “Se ele resolvesse levantar, poderia dirigir-se até à porta ser engolido pela serpente da vida”. A vida não deixa de ameaçar, é ela que apavora. Medo dos vivos, não dos mortos.

Jussara é apaixonada pela etimologia, pela escavação cuidadosa da origem das palavras, e do amálgama de sentidos que elas — como segredos — carregam. Palavras não são letra morta, como se diz. Ao contrário: transportam vida nesse embate de significados, em que uns (pelo uso, pelo comodismo, pela moda, sobretudo) predominam, enquanto outros escapam pelos ralos. E há sempre muitos mais a descobrir.

É uma luta crucial, e sem fim, que confere vigor às palavras, mas na qual há também muito humor, muito jogo e aventura. É com esse espírito, de disponibilidade para sentimentos surpreendentes, que Jussara Salazar escreve. Barroco? Eu seu posfácio, o uruguaio Victor Sosa afirma que Jussara é “neobarroca”. Bem, há um cortejo de anjos, santos, almas assombradas que circulam por seus poemas-relato. Há, para usar (com muito receio e paciência) a expressão de Sosa, uma “proliferação da palavra e a diamantização da mesma”. Mas Jussara não chega a isso — ela parte disso. Ela não escreve para produzir efeitos, ou para engendrar êxtases lingüísticos, ou reconstituir trilhas retóricas perdidas. Há muita coisa a mais em seus poemas, que ela escava, paciente, com esse manipular da palavra. A palavra — como em Cabral — faca.

Ela mesma ri da suposição barroca, como está em “Barrocoque das 3 salamantas”: “polindo ferrugens pingentes ninharias e nesgas”, escreve. Polindo palavras, mas não para gozar com seu brilho, não para o deslumbramento e a ornamentação; como dizia Francis Bacon, não o filósofo, mas o pintor, nada pior que o ornamento e o enfeite; e sim para cavucar. É verdade, ela inventa palavras, reinventa, joga com elas (por que não?) e também se refestela com o exercício do português antigo. Mas isso é só a partida.

Jussara não faz como a mãe de Gladíolos anéis, a partilha, sentada ao lado do espelho: “Penduricalhos sem valor roçam-lhe as ancas na seda que a criada estica sobre o banquinho de veludo”. Não, sua prosa-poesia não é afetada, não é chique, nem falsa; as palavras não são penduricalhos que manipulamos e torcemos e cujos estertores exibimos — como entre os “neobarrocos”. A poesia de Jussara Salazar está além desses jogos de salão.

No poema, fábulas. Delicadezas, miudezas, singelezas — exatamente como na pintura de Jussara Salazar (que une a literatura com as artes plásticas, e é sempre uma artista só e a mesma). Contos de fadas — mas com o sarcasmo que eles sugerem e merecem: “Gordota rainha ela marcha faminta a cauda do vestido arrasta aguarda o primeiro ministro, um rato em casaca”. Nunca uma coisa só, mas sempre outra coisa também. Coisas diferentes ocupam o mesmo lugar. Atrito — e, portanto, possibilidade de leitura. Etimologias: feridas expostas.

Alfonsin, “o menor homem do mundo”, apesar da aparência de circo, é filósofo. “Ao final da vida tinha a pele inteiramente preenchida por minúsculos mapas tatuada por indecifráveis códices segredos da hermenêutica cobrindo-lhe todo corpo”. Devorado pela filosofia? Engolido pelo que lê? “Registra-se porém ter sido ele el menor mor filósofo que existiu”. Gozo da palavra, ridículo da palavra. Grandeza e insignificância. Poesia e prosa — tudo junto, as fronteiras explodidas. Jussara sabe a gravidade da ferida, mas não perdeu o dom de rir de tanto sangue. Por que excluir sentimentos?

É que, em sua escrita, algo se passa para além não só das normas, mas das interpretações. “Obsoleta lei a do relógio”, ela escreve em Fardo. Acima de tudo, sempre o sol, como em Miçangas: caligrama de um escriba morto. O monge um dia quis ser o rei. Mas, diante dele, a bacia com água reflete o “ouro círculo solar que enlouquecendo cega até o monge, cega até el rei”. Todos, monge e rei, leitor e poeta, submetidos a algo que os ultrapassa. E que os rege. Não: nenhuma metafísica! Jussara Salazar se limita a jogar com as ilusões metafísicas, talvez para indicar sua inutilidade, sua ineficácia na nomeação do que nos vence. Porque a poesia (a arte) tem a ver com isso: com o inalcançável. Aponta para o perdido.

Também as palavras — que parecem tão bem manipuladas nas mãos melindrosas de outros poetas “da palavra” — aqui, em Jussara, experimentam o próprio fracasso. Ela ri de Galactita, que tem as mãos repletas de anéis e “adora poemas modernos, abstrações”. Ri do jogo da poesia e das pretensões do poeta. Retorce-se para verificar aquilo que, em sua escrita, falha. Pior que o corvo de Edgar Alan Poe são os cinco mil corvos (todos bem vivos e antipoéticos) que Jussara viu (viu?) sobre as árvores da alameda principal de Aix-en-Provence, no inverno de 1996. A vida — diante da qual a poesia vacila.

É como está na terceira alegoria: “Golias sou eu./ Ergo sem triunfo a minha própria cabeça/ e minhas cicatrizes./ Meu olhar, vivo resiste”. Para além do troféu, a existência. A beleza da poesia de Jussara Salazar está nessa declaração de impotência. Ela atravessa a vida, ri de seus desastres e faz, da impossibilidade da vitória, sua escrita. Da impossibilidade da nomeação, sua grandeza.

Natália
Jussara Salazar
Travessa dos Editores
130 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho